Opinião

Moïse Kabagambe e o crime preterdoloso

Direito Penal deve ser pautado pela razão e não pela emoção

21 de fevereiro de 2022

Por André Damiani e Vinícius Fochi*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Em 24 de janeiro o Brasil vivenciou mais um caso de selvageria e banalização da vida. O congolês Moïse Kabagambe, 24 anos, foi agredido até a morte por, ao menos, três indivíduos, já identificados e presos preventivamente.

A motivação do crime ainda é incerta. Segundo a família da vítima, Moïse, prestador de serviço do quiosque “Tropicalia”, localizado na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, foi brutalmente agredido após cobrar diárias de trabalho prestado. Já os acusados afirmam que o congolês estava embriagado e causava problemas no quiosque, razão pela qual começou uma briga entre a vítima e o responsável pelo estabelecimento, tendo os agressores agido para proteger este último.

Fato é que, sem a pretensão de adentrarmos ao mérito da embrionária investigação, o caso desperta relevante discussão acerca da tipificação criminal da conduta dos agressores.

A linha investigativa, até o presente momento, atribui ao fato a imputação de homicídio duplamente qualificado. Ou seja, a autoridade policial entende que os agressores agiram com a intenção direta de matar Moïse (dolo direto) ou, quando menos, agiram de forma a aceitar a produção do possível resultado morte (dolo eventual).

No entanto, ainda é demasiado cedo para descartarmos uma terceira figura do direito penal, o crime preterdoloso. Segundo os especialistas, preterdoloso é aquele crime agravado pelo resultado, o qual segue a fórmula “dolo no antecedente e culpa no consequente”.

Isto é, o agente pratica uma conduta intencional com vistas à produção de um resultado (dolo na ação). No entanto, desta conduta decorre um resultado posterior diferente e mais grave do que o pretendido inicialmente (culpa no resultado).

No caso em comento, ainda não é possível precisar a real intenção dos agressores. Que a conduta é cruel, desumana e criminosa, não restam dúvidas. No entanto, sob uma visão técnica do Direito Penal, a tipificação da conduta está atrelada à intenção do agente na produção do resultado, e não apenas na forma de execução do crime.

Caso o desenrolar das investigações confirme que os agressores não tinham a intenção de matar Moïse, mas sim causar-lhe, mediante violência física, intenso sofrimento, uma possível tipificação para a conduta seria o crime de tortura qualificado pelo resultado morte, previsto no art. 1, §3º, da Lei 9.455/97.

O tipo penal citado é um clássico exemplo de crime preterdoloso. Os agentes, no calor do momento, exaltados, decidiram agredir brutalmente Moïse, pretendendo torturá-lo por meio de castigos físicos, mas sem causar-lhe a morte. Todavia, devido aos ferimentos produzidos, a vítima acabou falecendo.

À luz do quanto narrado, a despeito do evento representar uma das piores facetas da barbárie humana, o Direito Penal deve ser pautado pela razão e não pela emoção. É do interesse de todos que o Direito Penal permaneça restrito à tecnicidade, desprovido de qualquer interferência externa. Para tanto, faz-se necessário analisar a correta tipificação da conduta criminosa no âmbito estreito das balizas fornecidas pela dogmática jurídico-penal.

*André Damiani, criminalista especializado em Direito Penal Econômico, é sócio-fundador do Damiani Sociedade de Advogados

*Vinícius Fochi é advogado criminalista no mesmo escritório

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