Opinião

Litigância predatória na Justiça do Trabalho: desafios contemporâneos e respostas institucionais

Prática caracteriza-se pelo volume elevado de ações ajuizadas e pela ausência de substância processual

Por Camila Eduarda Meira de Almeida  

A litigância predatória tem se consolidado como um dos maiores desafios enfrentados pelo Poder Judiciário, o que se reflete também na Justiça do Trabalho.

Em um cenário marcado pela hiper judicialização das relações laborais, escritórios de advocacia têm recorrido, cada vez mais, a mecanismos de automação e padronização de peças para promover a distribuição massiva de ações cujo objetivo não é a obtenção de tutela jurisdicional legítima, mas sim a maximização de ganhos mediante a exploração de assimetrias entre os litigantes e das limitações estruturais do sistema.

Essa prática caracteriza-se não apenas pelo volume elevado de ações ajuizadas, mas, sobretudo, pela ausência de substância processual. Petições idênticas, frequentemente desconectadas da realidade fática do autor, são protocoladas em varas estratégicas — geralmente com elevado índice de revelia — na expectativa de que, pela inércia ou dificuldade de resposta, as empresas rés celebrem acordos ou sejam condenadas por ausência de contestação.

Em muitos casos, os próprios reclamantes desconhecem a existência da demanda ajuizada em seu nome, revelando um padrão de atuação que flerta com a fraude processual e o desvirtuamento da função jurisdicional.

Embora não seja um fenômeno recente, a litigância predatória ganhou contornos mais preocupantes nos últimos anos, exigindo resposta institucional. Diante disso, diversos órgãos do Judiciário têm adotado medidas normativas e interpretativas para coibir a prática.

No plano normativo, destaca-se a Resolução GP nº 1/2025 do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, que regulamenta o procedimento de enfrentamento à litigância predatória ou abusiva.

A norma estabelece critérios objetivos para a triagem de demandas potencialmente abusivas, como a presença de petições padronizadas, ausência de documentação individualizada, reiteração de teses frágeis e uso estratégico de determinadas jurisdições. Constatados esses elementos, autoriza-se a extinção liminar do processo por ausência de interesse de agir, além da remessa dos autos ao Ministério Público e à Ordem dos Advogados do Brasil para apuração de eventual responsabilidade disciplinar.

Paralelamente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou diretamente a matéria no julgamento do Tema Repetitivo nº 1198, firmando a tese de que é legítima a extinção do processo sem resolução do mérito — com fundamento no art. 485, VI, do Código de Processo Civil — quando configurado abuso do direito de ação.

A Corte entendeu que a reiteração sistemática de ações semelhantes, desprovidas de individualização mínima da causa de pedir e de elementos probatórios que justifiquem a pretensão deduzida, revela manifesta ausência de interesse processual, autorizando o encerramento precoce do feito.

Ressaltou-se, ainda, que o direito fundamental de acesso à justiça, embora assegurado constitucionalmente, deve ser exercido com observância à boa-fé, à lealdade processual e aos fins sociais do processo.

A adequada compreensão da litigância predatória exige a distinção entre o legítimo exercício do direito de ação e sua utilização distorcida, voltada a finalidades alheias à tutela jurisdicional efetiva. Trata-se do ajuizamento reiterado e padronizado de ações judiciais com base em teses frágeis ou desconectadas da realidade do suposto titular do direito.

Tais demandas visam obter vantagem econômica por meio do desgaste estratégico da parte adversa e da exploração de vulnerabilidades processuais.

Outro traço relevante do fenômeno é o direcionamento estratégico das ações a varas onde se presume maior probabilidade de procedência ou menor resistência das empresas.

Busca-se concentrar demandas em unidades judiciárias com alta taxa de revelia, grande volume de processos ou reconhecida morosidade, apostando na formação de precedentes favoráveis ou na celebração de acordos rápidos, ainda que desproporcionais. Tal comportamento evidencia um uso oportunista do sistema, que passa a ser visto como instrumento de rentabilização, e não de justiça.

Além de sobrecarregar artificialmente o Judiciário, a litigância predatória compromete a credibilidade da advocacia trabalhista e fragiliza a efetividade da prestação jurisdicional.

A atuação de operadores do Direito que se valem dessa prática viola valores fundamentais do processo — como boa-fé, cooperação e proporcionalidade — e impõe custos elevados às partes e à sociedade. Trata-se, em última instância, de uma ameaça à integridade do sistema judicial e à confiança pública nele depositada.

A utilização intensiva de tecnologias automatizadas para a formulação de petições iniciais, sem qualquer aprofundamento na situação individual do trabalhador, tem sido apontada como vetor importante desse cenário. Escritórios organizados sob a lógica do volume, e não da qualidade técnica, operam em verdadeira linha de produção de demandas, reduzindo o papel do advogado a um executor de modelos padronizados.

Esse modelo prejudica a qualidade da prestação jurisdicional. O excesso de demandas artificiais consome tempo e recursos que poderiam ser destinados a casos com efetiva relevância.

Além disso, as empresas acabam firmando acordos não por reconhecerem o mérito das pretensões, mas para evitar custos e desgastes, perpetuando o ciclo da litigância predatória.

Superar esse quadro demanda esforço institucional coordenado. O Judiciário tem avançado com normas específicas e entendimentos jurisprudenciais consistentes, mas o enfrentamento estrutural requer o fortalecimento das corregedorias, o uso de tecnologias para detecção de padrões abusivos e a valorização de uma advocacia ética e responsável. A contenção da litigância predatória depende de um compromisso coletivo com a integridade do processo judicial.

Por fim, é necessário equilibrar o direito de ação com a proteção do sistema contra seu uso abusivo. Garantir um Judiciário funcional, confiável e acessível requer a rejeição de práticas que banalizam o processo e desvirtuam sua finalidade. A Justiça do Trabalho deve ser preservada como instrumento legítimo de pacificação social, e não como meio de exploração artificial de litígios.

*Camila Eduarda Meira de Almeida é advogada Pleno da área trabalhista contenciosa do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.

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