Opinião

Dinheiro em espécie: por que falar em algo que dizem estar fadado ao sumiço

Cédulas ainda são necessárias por uma questão cultural, conjuntural e de acesso

8 de setembro de 2022

Lucas Miranda/Pixabay

Por Mariana Chaimovich e Thaís Zappelini*

Artigo publicado originalmente na ConJur

É quase unânime: quando falamos, em nossos círculos sociais, familiares ou acadêmicos, que trabalhamos em instituição que atua para sugerir melhorias na prestação de serviços e na tomada de decisões que impactem na vida de usuários que integram a cadeia do dinheiro em espécie — que aliás percorre todo um caminho até chegar nas mãos da população —, nos deparamos, invariavelmente, com os mesmos comentários insinuantes: “lobistas do dinheiro? Cadê a (minha) mala com notas de R$ 200?”; ou “Nossa, mas que ideia é essa de defender a circulação de dinheiro em espécie — isso aí não vai acabar? Nunca ando com um real na carteira!”.

Pois bem. Esses comentários aludem, de certa forma, à realidade enfrentada pela população brasileira, que compreende um cenário no qual existem sim casos de corrupção envolvendo dinheiro em espécie, da mesma forma como existem pessoas que não usam mais dinheiro em cédulas ou moedas.

Porém, esse não é o único lado da moeda. Também é verdade que, por outro lado, há expressivos casos de corrupção envolvendo — pasmem! — lavagem de dinheiro dentro do sistema financeiro tradicional, assim como temos muitas pessoas desbancarizadas e sem qualquer acesso a recursos tecnológicos, que dependem exclusivamente do dinheiro em espécie para suprir as suas necessidades mais básicas, não apenas no Brasil, mas em diversos outros países.

Aqui, temos duas questões que esses comentários revelam e que causam dúvidas: primeiro, qual a relevância do dinheiro em espécie, considerando que muito se tem falado por aí que ele vai desaparecer? E segundo: o que é e qual o papel do lobby nesse sentido?

Começando pela primeira questão, trazemos aqui um par de exemplos que corroboram a percepção de que, apesar das drásticas mudanças que viemos experimentando, ainda mais considerado o contexto pandêmico que acelerou a digitalização de meios de pagamento, o dinheiro em espécie, ou simplesmente “numerário”, é necessário por uma questão cultural, conjuntural e de acesso.

Cultural, pois o dinheiro físico possibilita o desenvolvimento regional e, com isso, a preservação cultural. Conjuntural porque a consequência do primeiro aspecto é o fortalecimento do mercado interno. Um terceiro ponto, concernente à acessibilidade, é que cerca de 34 milhões de brasileiros e brasileiras [1] não possuem acesso a serviços bancários, sendo que aproximadamente 16 milhões de pessoas foram desbancarizadas em nosso país em virtude da pandemia [2].

Durante o período mais agudo da pandemia de Covid-19, o dinheiro em espécie permaneceu circulando Brasil afora, em momento em que a população mais vulnerável precisou sacar, em dinheiro, seu auxílio emergencial. Esse fato trouxe, inclusive, um contexto de emissão que culminou no lançamento da nota de R$ 200, necessária para suprir uma necessidade emergencial de dinheiro em espécie. Esse tema, inclusive, já foi tratado em outros artigos deste instituto [3].

Outro exemplo relevante sobre como esses fatores precisam ser considerados na relação com o dinheiro em espécie pode ser encontrado no Reino Unido. De acordo com notícia publicada recentemente na BBC News, as pessoas estão realizando um movimento de retorno ao dinheiro para manter controle de seus gastos, principalmente em razão da alta dos custos de vida no país [4].

Para se ter uma ideia do que isso representa em números, a reportagem informa que os saques nos postos dos Correios do país aumentaram mais de 20% desde julho do ano passado, número recorde nos últimos cinco anos. O ato de separar previamente cédulas para pagar suas contas de forma organizada e predeterminada permite que as pessoas tenham maior controle sobre suas finanças, segundo Natalie Ceeney, que comandou estudo do governo britânico sobre acesso a dinheiro. O acesso ao dinheiro em todas as localidades é algo considerado crítico, ainda mais pensando no fato de que é muito mais fácil gastar dinheiro que não se tem, segundo Ceeney, que ressalta, ainda, que a realidade digital não é para todos. Segundo ela, “milhões de pessoas não têm acesso a computadores ou a smartphones, portanto precisamos manter o dinheiro como alternativa viável”, diz ela (tradução livre).

Essa é a realidade apresentada em país com PIB e IDH superiores aos do Brasil. Para termos uma ideia comparativa, o PIB per capita no Brasil era de US$ 6.796 em 2020, enquanto o do Reino Unido de US$ 40.284. No mesmo ano, enquanto o Brasil ocupava a 84 ª posição no ranking, o Reino Unido estava na 13ª posição em universo de 189 países.

Nesse contexto, podem ser verificados dados avassaladores sobre o endividamento no Brasil. Antes, cabe uma breve definição do que seria, de fato, a caracterização de um “endividamento”. Conforme a Serasa, a dívida diz respeito a um compromisso de pagar algo. O endividamento, portanto, significa que o indivíduo contraiu uma obrigação: se você tem parcelas a pagar, você possui dívidas, mesmo que elas estejam sendo pagas em dia. Nesse âmbito, pesquisa feita pela Serasa aponta que aproximadamente 75% das famílias brasileiras estão endividadas, de modo que os principais fatores que levam ao endividamento, além do desemprego, são o descontrole financeiro e a falta de pagamento de contas diárias, que afetam cerca de 25% dos endividados [5].

É imprescindível falar da importância de se repensar a situação dessa parcela, não tão pequena, da população, que contraiu dívidas de maior ou menor monta, e sobre como evitar o descontrole de suas dívidas. Esse tema permeia inúmeras discussões de políticas públicas, mas focaremos em acontecimento recente: a Lei 14.181/2021, que trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro normas expressas para prevenir e auxiliar a tratar o superendividamento dos brasileiros e brasileiras, e foi regulamentada pelo Decreto 11.150/2022.

Basicamente, a lei de 2021 tem dois pilares: garantir o mínimo existencial e a oferta de crédito responsável. O decreto, por sua vez, define que aquilo que deve ser considerado o “mínimo existencial” (valor que não pode ser tomado pelos credores compulsoriamente) seria de somente 25% do salário-mínimo, ou R$ 303, atualmente. Este valor, nota-se, é inferior ao valor de corte da linha da pobreza [6], que, atualmente, é de R$ 497 mensais [7].

Esse endividamento, que passa pelo sistema financeiro, tem relação íntima com fatores como perda de poder aquisitivo, empréstimo de nome a terceiros, além do agravamento da condição financeira por motivos como pandemia e crises econômicas [8].

Curiosamente, existem diversas manifestações genéricas na mídia que apontam que, supostamente, usar menos dinheiro em espécie poderia ajudar as pessoas a controlarem os seus gastos, sem, contudo, apresentar dados que embasem essa perspectiva [9]. A justificativa principal alegada é que a melhor arma para uma boa organização financeira seria o controle dos gastos por meio de seu registro, algo que ficaria mais fácil com o uso de meios digitais de pagamento, como cartões de crédito ou Pix.

Porém, meios digitais, em que pese sua agilidade, também possuem pontos desfavoráveis, como permitir que se gaste montantes irreais, culminando no superendividamento que vemos hoje. O cartão de crédito pode ser uma maneira simples de controlar os gastos, assim como pode ser um jeito certeiro de se endividar em parcelas a perder de vista.

Da mesma forma, longe de dizer que o dinheiro em espécie é isento de problemas, procuramos aqui apresentar a importância de se ter em vista a inclusividade e considerar que pelo menos 10 milhões de brasileiros vivem em situação de miséria. Esse número equivale a quase toda a população de Portugal [10]. Assim, não se trata de anular opções aos cidadãos e usuários dos meios de pagamento, mas de pensar em sua coexistência, priorizando um posicionamento que considere as camadas mais vulneráveis da população e o objetivo de garantir uma vida financeira saudável.

Por fim, precisamos ter em mente que, diferentemente do que é colocado pelo senso comum, a atividade de lobby não está relacionada ao aliciamento, à corrupção e à ilegalidade. De maneira diversa, abarca a atuação de profissionais que voltam seus esforços na participação direta da sociedade civil em debates sobre tomadas de decisões, seja no cerne do Poder Executivo, Judiciário, ou em proposições legislativas. Temos, então, o objetivo de influenciar atores públicos em espaços decisórios, para melhor informar quem participa desse processo.

As transportadoras de valores levam o dinheiro para onde ele é necessário. Tanto isso é verdade que se trata de atividade considerada essencial por decreto federal, e que, durante o período mais agudo da pandemia de Covid-19, permaneceu atuando por todo o Brasil, em momento em que a população mais vulnerável precisou sacar o auxílio emergencial em espécie.

Tomadores de decisão precisam encarar diariamente pautas com assuntos muito específicos, daí a importância de terem acesso a informações confiáveis e fundamentadas para embasar suas decisões. Logo, papel imprescindível do ainda pouco compreendido “lobby do dinheiro” é, exatamente, prezar para que os maiores atingidos por esse tipo de decisão (a população em geral e suas camadas mais vulneráveis) possam ter seus interesses representados e resguardados da melhor forma nesse processo.

[1] Informação disponível em: https://valorinveste.globo.com/produtos/servicos-financeiros/noticia/2021/04/27/34-milhoes-de-brasileiros-ainda-nao-tem-acesso-a-bancos-no-pais.ghtml. Acesso: 25/8/2022.

[2] Informação disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/166-milhoes-de-brasileiros-foram-bancarizados-na-pandemia/. Acesso: 25/8/2022.

[3] Exemplos podem ser encontrados em: https://www.itcn.org.br/noticias/quanto-custa-o-dinheiro; https://www.itcn.org.br/noticias/quem-diz-que-dinheiro-em-especie-so-serve-a-corrupcao-nao-conhece-o-brasil; e https://www.itcn.org.br/noticias/nota-de-r-200-nao-elevara-a-inflacao. Acesso: 25/8/2022.

[4] Informação disponível em: https://www.bbc.com/news/business-62437819. Acesso: 23/8/2022.

[5] Informação disponível em: https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/endividamento-como-saber-se-faco-parte-da-estatistica/. Acesso: 23.08.2022.

[6] Este artigo não tratará especificamente deste tópico. Para maiores informações a respeito, consultar https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/07/decreto-em-lei-sobre-superendividamento-pode-criar-forma-de-escravidao-moderna.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/08/entidades-querem-adiar-credito-consignado-do-auxilio-brasil.shtml. Acesso: 23/8/2022.

[7] Informação disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/entre-2019-e-2021-96-milhoes-de-pessoas-entraram-na-linha-de-pobreza-no-brasil-indica-fgv-social/. Acesso: 23/8/2022.

[8] Informação disponível em: https://www.serasa.com.br/imprensa/pesquisa-endividamento/. Acesso: 23/8/2022.

[9] Informação disponível em: https://www.inset.com.br/dinheiro/quer-controlar-os-gastos-usar-menos-dinheiro-em-especie-pode-te-ajudar. Acesso: 23/8/2022.

[10] Informação disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/06/29/numero-de-pessoas-em-situacao-de-pobreza-no-brasil-bate-recorde-mostra-pesquisa.ghtml. Acesso em: 25/8/2022.

Mariana Chaimovich é advogada, legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), colaboradora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV, mestre em Direito Internacional pela USP e doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.

Thaís Zappelini é advogada, consultora de Relações Governamentais no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), mestre e doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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