Opinião

Racismo contra todos

Toda pessoa que praticar o crime deve ser punida proporcionalmente ao caso

24 de agosto de 2021

Por Daniel Gerber e Thaynara Rocha*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O tema do racismo, assim como todos os demais que envolvem política identitária, jamais deixará de levantar polêmica. De início, importante ressaltar a relevância da promulgação da Lei nº 7.716/89, que definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Este diploma legal teve como premissa o lamentável histórico do Brasil, no qual o racismo contra os negros esteve e continua presente. Na tentativa de erradicar essa realidade, a Lei estabeleceu, em seu artigo 1º, que, que serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Muito a criação do referido diploma seja uma referência histórico-cultural onde perdura o racismo, majoritariamente, contra a população negra, nota-se que o legislador não especificou qual a raça a ser tutelada.

Pelo contrário, sendo o racismo contra qualquer raça um instrumento de separação social inaceitável em tempos que se pretendem civilizados, a proteção legal abrange todas elas, seja a negra, parda, branca, indígena, dentre outras.

Diante desta premissa é que se faz a crítica ao entendimento adotado nos autos nº 3466-46.2019.4.01.3500, que julgou improcedente uma denúncia ofertada pelo Ministério Público contra pessoa negra que pregou, com incitação ao ódio, a separação de sua raça com a da branca, afirmando que tinha nojo desta última e dos relacionamentos entre mulheres negras com homens brancos.

A decisão absolutória afirmou não fazer sentido buscar-se no diploma legal a “finalidade de proteger os grupos majoritariamente brancos contra discriminação, até porque, contra esse grupo, a discriminação que existe no Brasil sempre foi positiva, ou seja, a esse grupo foram reservados os melhores empregos, hospitais, escolas, cargos públicos etc.”.

Pois bem: sem ignorar o panorama social majoritário que levou à promulgação da Lei nº 7.716/89 — muito menos desmerecendo-o —, tal posicionamento não se sustenta pelos vieses jurídico e social.

Da leitura do artigo 1ª da referida Lei, nota-se, claramente, que se trata de um crime comum, ou seja, o tipo penal não exige qualquer qualidade para o sujeito ativo ou passivo, podendo qualquer pessoa vir a ser responsabilizada.

Além disso, se quisesse o legislador especificar qual a raça, cor, etnia e religião a ser protegida, assim o teria feito.

Assim, ao trazer um conceito aberto de raça e cor e objetivar e punir o separatismo que a discriminação gera no corpo social, almejou o legislador proteger a todas proibindo o sujeito de fazer uso da garantia da livre expressão para incitar ao ódio, a discriminação e a separação racial sem que seja penalizado de alguma forma.

Na pior das hipóteses, se houver ceticismo quanto à eficiência do Direito Penal na imposição de uma agenda positiva — onde todos passem a respeitar verdadeiramente o próximo —, serve, a Lei, para evitar que o ódio continue a se disseminar e, mediante interiorização e normalização de um discurso beligerante, gere a continuidade infindável de conflitos violentos entre as raças.

Esse é o entendimento da nossa Suprema Corte, inclusive, ao destacar no julgamento do Habeas Corpus n. 82424, que “o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra”. “Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.”

Ora, pelo teor da decisão judicial aqui criticada percebe-se que existe um desprezo pelos efeitos nefastos que a incitação ao racismo gera na sociedade, ainda que realizada contra quem, historicamente, não padeceu deste mal.

Inclusive, como bem salientou Martins Luther King que “para desenvolver uma consciência negra e sentir que somos um povo não é preciso que desprezemos a raça branca como um todo”. “Não é a raça em si que combatemos, mas as políticas e ideologias que líderes dessa raça formularam para perpetuar a opressão.”

Resta claro, portanto, que a ausência de danos no passado (inexistência de racismo contra brancos) não garante ausência de danos no futuro. Pelo contrário, a ideia de que inexiste atos de racismo contra a raça branca nada mais faz do que liberar discursos que, com o tempo, se converterão exatamente no mal que se deseja evitar. Deixar de punir o ato, por considerá-lo inexistente diante da história passada nada mais é do que ignorar quer tudo tem um começo.

Assim, volta-se ao ponto: em razão da não distinção pela Lei sobre qual raça deveria ser tutelada, assim como do evidente potencial lesivo e cultural que a incitação ao ódio de um povo conta outro gera, toda pessoa que praticar racismo, independentemente das circunstâncias, deve ser punida proporcionalmente ao caso.

Daniel Gerber é advogado da área penal com foco em Gestão de Crises Político e Empresarial, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio do escritório Daniel Gerber Advogados Associados.

Thaynara Rocha é sócia do Daniel Gerber Advogados Associados.

Notícias Relacionadas

Opinião

Consulta 145 esbarra na interpretação histórica e sistemática da LC 160

Insurgência da Receita contra disposição clara da lei não há de ter vida longa

Opinião

Quem são seus parceiros mais críticos?

Monitoramento de terceiros deve ser rotina em negócios