Opinião

O labirinto da PEC da Relevância

Limitação de recursos no STJ poderá prejudicar a uniformização da jurisprudência

9 de novembro de 2021

Por Nelson Wilians*

Artigo divulgado originalmente na Folha

Segundo a mitologia grega, o Labirinto de Creta foi construído para prender o Minotauro, a pedido do Rei Minos, que recebeu de presente do deus Poseidon um belíssimo touro branco para que fosse sacrificado em sua homenagem. Mas a beleza do touro fascinou o rei, que sacrificou outro touro. ​

Furioso, Poseidon fez com que a esposa de Minos se apaixonasse pelo touro branco. Dessa união nasceu o Minotauro. Não podendo matar o “filho” de sua esposa, Minos construiu um labirinto para enviar o Minotauro com a certeza de que ele não escaparia.

Ao aproximar a lente sobre a PEC da Relevância, aprovada recentemente no Senado para a admissão dos recursos especiais que serão julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), me chamou a atenção o fato de, além de ampla, apresentar poucas possibilidades de limitar o acesso àquela Corte Superior.

Só em 2021, o STJ recebeu mais de 350 mil processos dos 27 Tribunais de Justiça e dos 5 Tribunais Regionais Federais.

Para o presidente do tribunal, ministro Humberto Martins, a PEC corrige uma distorção do sistema ao permitir que a Corte se concentre em sua missão constitucional de uniformizar a interpretação da legislação federal.

A mudança terá impacto radical no curso de inúmeros processos de diferentes campos do direito, principalmente as discussões entre partes, que não sejam de matérias aplicáveis a diversos cidadãos e não tenham relevância financeira nos termos da legislação, encerrando-se a prestação jurisdicional na segunda instância. As causas de consumidor não têm valor nominal alto, mas representam um volume expressivo de processos no tribunal, em conjunto.

Entretanto, o que me chama a atenção é que a limitação de recursos poderá prejudicar a uniformização da jurisprudência à medida que aumenta o poder de decisão dos tribunais, podendo gerar divergências entre decisões em casos análogos e prejudicar a segurança jurídica.

Outro ponto que se destaca é a relevância presumida das ações penais, que, em tese, permite que qualquer ação suba ao STJ, o que por si só já representa uma avalanche de processos.

O novo texto destaca ainda que haverá relevância presumida nas ações de improbidade administrativa, cujo valor de causa ultrapasse 500 salários mínimos. Esse valor não implica necessariamente que causas de menor valor não possam ser erguidas ao STJ.

Ainda, o Tribunal somente poderá reconhecer o recurso irrelevante pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento. O próprio STJ, por meio de seu regulamento interno, atribui a seu presidente a competência para fazer a admissibilidade de recursos, o que não deixa de ser uma forma direita, mais rápida e menos burocrática de fazer a filtragem.

Em síntese, o STJ julga atualmente causas relevantes que não serão mais julgadas por causa desses critérios. Porém, com tantas aberturas presumidas, o lindo touro branco dado de presente pelo Senado ao STJ, pode resultar num Minotauro, e a PEC da Relevância se revelar um Labirinto de Creta ao sistema jurídico.

*Nelson Wilians é empreendedor e advogado

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