Opinião

Contra as opiniões razoáveis: a intenção e o golpe

Mentalidade golpista só se contenta com o direito quando este já deixou de ser direito

22 de fevereiro de 2024

Por Georges Abboud e Matthäus Kroschinsky*

O equivalente de ‘Deus está conosco’ é hoje ‘a opinião pública está conosco’. Esse é o efeito fundamental da pesquisa de opinião: constituir a ideia de que existe uma opinião pública unânime, e, portanto, legitimar uma política e fortalecer as relações de poder que a fundam ou a tornam possível.”[1]

Um debate inusitado tomou conta de parcela da mídia recentemente, e pode ser sintetizado da seguinte forma: em qual estágio do iter criminis pode-se punir um golpe de Estado?

A discussão surgiu em meio ao crescente volume de material que sugere a existência de uma tentativa de golpe supostamente comandada pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, e que contaria não só com a complacência, como, também, com a participação ativa de funcionários do alto escalão do governo e do aparato estatal em geral.

Prisões e buscas e apreensões foram decretadas. Minutas de decretos golpistas foram encontradas, além de gravações de reuniões governamentais em que, aparentemente, discutia-se a possibilidade do uso de força militar para impedir a eventual posse do candidato adversário, tudo isso orquestrado — ainda que de forma canhestra — paralelamente a uma campanha de descredito das urnas eletrônicas e com vistas a se concretizar antes que a comunidade internacional pudesse reconhecer a vitória eleitoral de Lula.

Nos parece inequívoco que, caso confirmadas as suspeitas, tratar-se-ia de um dos mais graves episódios da democracia brasileira desde 1988.

Cinismo
Ainda assim, parcela da mídia historicamente mais complacente com esse tipo de atitude autoritária — verdadeiros garantistas de ocasião — sustenta cinicamente que as investigações não apontam para uma efetiva tentativa de golpe de Estado, mas, sim, de cogitações, meras intenções impassíveis punição criminal.

Nessa discussão, aliás, tão curiosas quanto suas presenças são as suas ausências. Ao que nos parece, o moralismo ex cathedra, sempre ágil nas críticas ao Supremo Tribunal Federal, tece à passos de tartaruga suas análises jurídicas acerca de uma temática tão grave, e em momento algum se dispõe a reconhecer que o STF foi um dos poucos aparatos institucionais efetivos na defesa da democracia brasileira.

Voltemos, todavia, ao assunto deste pequeno texto, que tem como pano de fundo a seguinte indagação: no que diz respeito a uma tentativa de golpe de Estado, quão razoáveis são as opiniões dos especialistas razoáveis?

O sempre certeiro Lenio Streck tratou de questão similar na ConJur, lançando, desde logo, aquilo que é explicitado pela utilização do verbo tentar nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal (referentes aos crimes contra as instituições democráticas): o crime de golpe de Estado se concretiza pela tentativa.

Streck trouxe-nos exemplos colhidos de reportagens de conhecidos jornais que se fiaram na opinião de “especialistas”, dentre os quais estavam aqueles que sustentaram precisamente a existência de simples intenções ou atos preparatórios que não devem ser punidos porque não culminaram em efetiva execução de um golpe de Estado.

Unanimidades
É bem verdade que as unanimidades costumam ser perigosas. Ainda assim, é no mínimo curioso o esforço permanente de parcelas da mídia em demonstrar que aparentemente qualquer discussão pode ser razoavelmente vista sob duas perspectivas diametralmente opostas.

Nessa seara a estratégia costuma ser sempre a mesma: a diluição de fatos graves e complexos a formalismos jurídicos que interessam apenas aos juristas.

Ao fazê-lo, contudo, a gravidade de um debate é frequentemente enfraquecida às custas de um dos mais importantes deveres de qualquer sociedade — a indignação — de tal modo que uma pergunta fundamental, mas não formulada, parece quase cínica: em uma democracia, a mera intenção de derrubar um governo democraticamente eleito, compartilhada por diversos agentes do alto escalão do Estado, não é suficientemente preocupante?

Sequer precisamos nos ocupar com a desmistificação da falácia das opiniões; Bourdieu fê-lo por nós ao contrariar três postulados das pesquisas de opinião que se aplicam com perfeição aos palpites dos especialistas de que estamos tratando:

(i) pressupõe-se que todos possam ter uma opinião;
(ii) presume-se “que todas as opiniões se equivalham”;
e (iii) presume-se, também, que “no simples fato de se fazer a mesma pergunta para todos se encontra implicada a hipótese de que há um consenso acerca dos problemas, ou, em outras palavras, que há um consenso acerca das perguntas que merecem ser perguntadas”. [2]

No nosso caso, o artifício da “opinião de especialistas” cria a ilusão de que é a razoável o posicionamento segundo o qual a “mera intenção” de dar um golpe de Estado não deve ser punida. Em síntese, o que uma “matéria equilibrada a fórceps” (Streck) faz é simplesmente legitimar posições jurídicas absurdas e que se fundamentam na força, e não no direito.

Aliás, como se pune um golpe de Estado consumado?
À essa altura já seria de se esperar que as autoridades constituídas tivessem sido expurgadas de seus cargos e que o próprio ato golpista sequer fosse considerado crime, e isso porque a instauração de um novo regime pela via de um golpe quebra a interrelação necessária entre política e direito, fazendo com que a primeira passe a ser um produto exclusivo da força e, paralelamente a isso, o direito, sem a legitimidade da política, precise encontrar fundação em outro âmbito da sociedade — a moral, a religião etc. — deixando, assim, de se fundamentar em seus próprios critérios internos fixados constitucionalmente, da qual decorre a noção de constitucionalidade como a mais abrangente reflexividade do sistema jurídico. [3]

Colocado em outros termos: a mentalidade golpista só se contenta com o direito quando este já deixou de ser direito, quando este já se despiu completamente de sua dignidade. Em sua perspicácia, o articulista acredita que é razoável o posicionamento segundo o qual o direito nega a si mesmo e quando se deixa para punir quando a punição for impossível, ou reduzida à — frequentemente atrasada — reparação histórica.

A Ministra Carmen Lúcia fez menção a essa circunstância curiosa no bojo da AP 1.044, na qual julgou-se o deputado federal Daniel Silveira e em que se discutiu se a propagação de discursos de ódio e de ideias contrárias à ordem constitucional estaria ou não abarcada pela imunidade parlamentar.

Contra o argumento de que a mera incitação não seria crime, a Ministra lembrou, de forma muito acertada, que se fosse necessária a consumação, ou seja, o fechamento efetivo das instituições, sequer haveria STF para realizar o julgamento. [4]

É preciso ir além e indagar o que está por detrás de opiniões tão razoáveis que, no nosso caso, instrumentalizam o direito penal.

Como já afirmamos anteriormente, o direito penal nazista consagrou na infraestrutura jurídica do regime racista, dentre outros, a possibilidade de ampliação, pelos juízes, do escopo das condutas puníveis e, dessa forma, a condenação de pessoas cujos atos fossem essencialmente contrários ao “sentimento popular”, que era buscado, em síntese, na figura do líder infalível. [5]

É notório que o direito penal brasileiro se converteu de há muito em arma contra os indesejados da sociedade. Ainda assim, foi possível ir além: agora, a doutrina penal brasileira de exceção ignora que alguns crimes se consumam por simples tentativa.

Diferentemente do que se poderia esperar da ala golpista da sociedade em relação a crimes famélicos, em que a “insignificância” é estímulo a crimes maiores e reiterados, o reacionarismo brasileiro adota a política da tolerância em relação a tentativas de golpe de Estado, na esperança de que um dia efetivamente cheguem à consumação.

Por detrás da cínica defesa dogmática da “mera intenção” o reacionarismo brasileiro esconde a repristinação de um dos mais conhecidos artifícios do direito nazista, que é a hipostasia da figura do líder que canaliza a vontade popular. Daí a razão pela qual a anistia é o instinto de sobrevivência do golpista.

Afinal, o que fazer quando seus líderes são considerados criminosos? O que fazer quando não se tem “sequer o consolo de que a violência a que deve chamar de crime é característica apenas dos maus?” [6]

Trata-se da outra face da ontologia do criminoso; o preço que se paga por considerar o crime uma característica que se adere em definitivo ao sujeito é a rejeição de que seus semelhantes também possam cometê-lo.

Contra isso, lembremos do jovem Marx: “[n]ão acredito nem um pouco que pessoas possam ser garantias contra leis; acredito, muito antes, que leis devam ser garantias contra pessoas”. [7]

[1] BOURDIEU, Pierre. “A Opinião Pública Não Existe”. In: Questões de Sociologia, trad. Fábio Creder, Petrópolis: Vozes, 2019, pp. 210-221 (p. 212).

[2] BOURDIEU, Pierre. “A Opinião Pública Não Existe”, cit., p. 210.

[3] Cf. NEVES, Marcelo. Constituição e Direito na Modernidade Periférica: Uma Abordagem Teórica e uma Interpretação do Caso Brasileiro, São Paulo: WMF Martins Fontes, trad. Antônio Luz Costa, 2018, p. 280.

[4] Cf. o voto da Min. Carmen Lúcia na AP 1044, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20.4.2022, p. 318/418 do acórdão.

[5] ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, Parte I; KROSCHINSKY, Matthäus. “A mídia e a ontologia do criminoso”. In: Consultor Jurídico, 11.1.2024. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2024-jan-11/a-midia-e-a-ontologia-do-criminoso/]. Cf. KIRCHHEIMER, Otto. “Criminal Law In National Socialist Germany”. In: SCHEUERMAN, William E. (Ed.). The Rule of Law Under Siege: Selected Essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer, Berkeley-Los Angeles-Londres: University of California Press, 1996, p. 175.

[6] ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução, trad. Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 126.

[7] MARX, Karl. Os Despossuídos: Debates Sobre a Lei Referente ao Furto de Madeira, trad. Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo, 2017, p. 101.

Georges Abboud é professor e advogado.

Matthäus Kroschinsky é mestre em Direito pela PUC-SP e advogado em Warde Advogados.

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