Opinião

Caso Choquei: por que o incidente não é um novo chamado para o PL das Fake News

Superregulamentação de plataformas pode prejudicar inovação

16 de fevereiro de 2024

burnout

Por Daniel Becker e Francisco de Mesquita Laux*

Ocorrido especialmente durante o período de recesso forense, o caso envolvendo Whindersson Nunes e o suicídio de uma jovem por conta de fake news que viralizou no ambiente virtual é trágico e preocupante. Para quem decidiu se afastar das hard news: uma jovem de 22 anos, sem qualquer vinculação anterior com a arena pública, foi vítima de uma notícia falsa disseminada nas redes sociais, que a apontava como sendo um suposto affair do humorista. Esta fake news foi compartilhada, sem apuração dos fatos, por perfis de fofoca nas redes sociais, incluindo o perfil Choquei, que possui mais de 20 milhões de seguidores somente no Instagram.

A divulgação das conversas falsas causou um grande impacto na vida da jovem, que, além de completamente desacostumada com a publicidade nociva causada pela divulgação de informações falsas, já sofria de depressão. A jovem chegou a fazer um desabafo nas redes sociais pedindo a cessação dos comentários, mas, infelizmente, a situação se agravou ao ponto de levar à sua morte.

Tão logo noticiado o infame evento e a sua conexão com o gatilho emocional oriundo da divulgação de dados falsos em redes sociais, nos céus, abutres começaram a planar. Com gritos de ordem, políticos e celebridades voltaram a defender o PL das Fake News e a necessidade de nova regulação de plataformas – além daquela já estabelecida pelo Marco Civil da Internet e pela LGPD – especialmente naquilo que se refere à responsabilização das redes pelo conteúdo postado por usuários. E a história, como diz o jargão, se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Afinal, quem não se lembra que o último empurrão para que o PL das Fake News caminhasse foi dado pela suposta causalidade entre um atentado em uma escola e o descontrole (sic) de conteúdo em redes sociais? Em tom apostólico, o discurso é o mesmíssimo: precisamos responsabilizar as redes sociais para evitar que tragédias como essas não se repitam, pois redes sociais são terras de ninguém virtuais.

O primeiro equívoco do argumento está na falsa impressão de que os gestores das redes sociais não exercem qualquer moderação a respeito do conteúdo postado pelos usuários. A criação de perfis em redes sociais compreende a aceitação, pelo usuário, dos termos de uso e das políticas daquela plataforma. Embora tais instrumentos raramente sejam lidos – daí a falsa impressão acima citada – é necessário destacar que eles normalmente estipulam regras de convivência e sanções para a hipótese de descumprimento.

Uma ideia da magnitude dos esforços das plataformas para efetivar as diretrizes previamente estabelecidas e aceitas pelos usuários pode ser extraída dos relatórios publicados pela Meta, gestora do Instagram, uma das plataformas envolvidas no debate originado pelo “caso Choquei”. Somente entre julho e setembro de 2023 (terceiro trimestre do ano passado, portanto), a Meta adotou medidas em relação a mais de 7 milhões de postagens que violaram as políticas de violência e incitamento da plataforma. No mesmo período, mais de 8 milhões de postagens envolvendo a prática de bullying foram objeto de moderação pela rede e 827 milhões de perfis falsos (usualmente utilizados para disseminar fake news) foram excluídos[1].

O que se tem, portanto, é que as plataformas atuam com sensível efetividade para concretizar os dispositivos contratuais estabelecidos para convivência no ambiente virtual.

Por sua vez, o estabelecimento de medidas de restrição de conteúdo com base na legislação estatal é um tema de elevada complexidade que, em primeiro momento, escapa da esfera de competência das redes, porque (i) elas não conhecem todas as leis vinculadas ao direito de fala ao redor do mundo e (ii) o que é mais relevante, não podem declarar a violação ao direito estatal para editar ou remover postagens, porque a jurisdição é monopolizada pelo Estado, por meio do Poder Judiciário.

Daí o segundo equívoco do argumento vinculado à nova regulação: imaginar que o contexto atual é de inexistência de mecanismos potencialmente adequados para proteção de direitos no ambiente virtual. Essa suposição ignora, por exemplo, a possibilidade de imposição de obrigações de fazer com base em leis locais. Ordens judiciais advindas do Brasil ensejaram a restrição de aproximadamente 6 mil postagens e 4 mil perfis do Instagram no primeiro semestre de 2023[2]. A responsabilização das plataformas, de acordo com o art. 19 do Marco Civil da Internet, se dá no contexto do eventual descumprimento de tais ordens, de maneira a evitar o estabelecimento de um ambiente de editoria e controle sobre a expressão por parte das redes.

Por mais que se admita a possibilidade de aperfeiçoamento do modelo processual brasileiro, especialmente no objetivo de trazer mais agilidade na expedição e comunicação de ordens judiciais, fato é que existem leis atualmente em vigor no Brasil que protegem os usuários e, ao mesmo tempo, buscam manter o ambiente de prevalência da liberdade de expressão.

Quando se busca regular a qualquer custo e sem o devido amadurecimento do debate, há necessariamente um resultado deletério e ineficiente. A regulação apressada das plataformas, embora possa parecer benéfica à primeira vista, carrega consigo um conjunto de riscos e desvantagens que não podem ser ignorados. Primeiramente, a tendência dos governos à censura excessiva é uma preocupação central. Sob o pretexto de proteger valores como moralidade religiosa, segurança nacional ou ordem pública, os direitos fundamentais de expressão e criação dos usuários e criadores são ameaçados.

A proibição governamental, frequentemente disfarçada de proteção, pode efetivamente sufocar a diversidade de pensamento e opiniões, pressupostos da simetria informacional, inerente a qualquer democracia. Além disso, a privacidade e proteção dos dados dos usuários estão em constante risco sob regimes de regulamentação. As leis que obrigam as plataformas a compartilharem informações dos usuários abrem brechas para severas violações de privacidade.

Mas não é só. A responsabilidade atribuída às plataformas de mídia social sobre o conteúdo hospedado em seus sites é um terreno escorregadio. Embora a intenção seja coibir discursos de ódio e cyberbullying, frequentemente, essa responsabilidade leva a uma censura indiscriminada que pode mais prejudicar do que proteger.  A regulação, é bom dizer, também pode exacerbar a polarização política, uma vez que diferentes leis podem ser aplicadas de maneira desigual, dependendo das inclinações políticas das plataformas ou de seus usuários. Esse cenário fomenta divisões ao invés de promover um espaço para diálogo e entendimento mútuo.

Ademais, a inovação e o crescimento tecnológico são gravemente prejudicados pela superregulamentação. A imposição de normas estritas desencoraja investimentos em novas tecnologias, limitando o avanço e a diversificação do setor. Especificamente para plataformas menores, a situação se torna ainda mais desafiadora. A falta de recursos e expertise para cumprir com regulamentações complexas pode impedir sua existência e crescimento, resultando em um mercado menos diversificado e inovador.

Em suma, embora a regulamentação das mídias sociais possa ser motivada por boas intenções, suas consequências negativas – desde a censura até a estagnação da inovação – destacam a necessidade de uma abordagem mais cautelosa e ponderada, que preserve a liberdade de expressão e promova um ambiente digital saudável e aberto. Entretanto, os caçadores de ambulância, aproveitando-se, descarregam uma tempestade de silogismos e suposições para exigir a volta — e a aprovação sem o devido amadurecimento do debate público – do PL das Fake News.

[1] Informações extraídas de https://transparency.fb.com/reports/community-standards-enforcement/, acesso em 10 de janeiro de 2024.

[2] Informação extraída de https://transparency.fb.com/reports/content-restrictions/country/BR/, acesso em 10 de janeiro de 2024.

Francisco de Mesquita Laux. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Advogado

Daniel Becker. É sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados e Regulatório no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados. Diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Membro das Comissões de 5G e Assuntos Legislativos da OAB/RJ. Organizador dos livros “O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind”; ” O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind, vol. 2″; ” Regulação 4.0, vol. I e II”; ” Litigation 4.0″; e “Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados”, todos publicados pela Revista dos Tribunais.

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