Opinião

A extraterritorialidade penal no caso Vinícius Júnior

Aplicação do princípio seria de dificílima consecução

29 de maio de 2023

Por Leonardo Magalhães Avelar e Bruno Sarrubbo Scalabrini*

No último dia 21, o mundo assistiu atônito a mais um grave episódio de discriminação racial ocorrido no futebol europeu. Durante o jogo disputado entre as equipes do Real Madrid e Valencia, a torcida do clube anfitrião passou a emanar cânticos com teor discriminatório e racista, referindo-se ao atleta brasileiro do clube merengue, Vinícius Junior, como “mono” – termo do espanhol para se referir a macaco.

Condutas semelhantes se repetiram ao longo de toda a temporada do campeonato da La Liga – principal disputa do calendário futebolístico espanhol -, mas que ganhou maior repercussão neste final de semana, não só pela constante repetição deste ato, mas por ter sido uma conduta generalizada, praticada não só por um indivíduo, mas por diversos dos torcedores presentes ao estádio.

Diante da repercussão atingida, a situação passou a ser tratada em patamar diplomático entre o Brasil e a Espanha, o que gerou até mesmo uma importante manifestação do atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para que fossem tomadas medidas criminais em face dos agressores.

Em caso de omissão das Autoridades Públicas espanholas, o ministro Flávio Dino afirmou que estudaria até mesmo a instauração de procedimentos criminais no Brasil para apuração dos delitos sofridos pelo cidadão brasileiro, utilizando-se do princípio da extraterritorialidade, previsto no artigo 7º, do Código Penal.

Ainda que referida medida não tenha sido necessária, tendo em vista que já houve a prisão de parte dos autores, foi o bastante para trazer novamente à tona o tema da extraterritorialidade, que acaba passando despercebido dentre os diversos temas de relevância para a área penal.

A questão a ser posta é: caso não houvesse qualquer ação por parte da Espanha para punir os fatos ocorridos, seria possível o processamento destes delitos no território brasileiro?

A lei penal brasileira é aplicada por primazia aos delitos praticados dentro do território nacional – e suas extensões expressamente previstas -, conforme previsto no artigo 5º, do Código Penal, o que em uma primeira leitura, coibiria a instauração de procedimentos criminais no país por fatos ocorridos na Espanha.

Entretanto, como bem pontuado pelo antigo magistrado federal e atual ministro da Justiça, há previsão no artigo 7º, do Código Penal, para que seja aplicada a lei penal brasileira a situações específicas de delitos cometidos em território estrangeiro, com aplicação da extraterritorialidade.

Nesse sentido, é possível observar duas espécies de extraterritorialidade previstas na legislação pátria, a incondicionada (prevista no inciso I do artigo 7º) e a condicionada (prevista no inciso II e no §3º do artigo 7º). Enquanto a primeira se refere a atentados cometidos diretamente à República Federativa Brasileira (como crimes contra a vida do presidente ou contra o patrimônio dos entes federativos), ou em desfavor da população brasileira como um todo (genocídio), a segunda se refere a casos em que o país se dispõe a processar em face de questões diplomáticas e em situações em que brasileiros são vítimas de delitos.

O caso concreto se amoldaria à situação de extraterritorialidade condicionada, prevista nas seguintes hipóteses: (i) delitos aos quais o Brasil se obrigou a reprimir por tratado internacional; (ii) cuja autoria delitiva seja de um brasileiro; (iii) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, quando o país em que foi cometido o delito nada o fizer; e (iv) quando a vítima do delito for brasileira e o crime tenha sido cometido fora do país.

Para além das hipóteses taxativas previstas, há algumas condições previstas pela lei penal para que seja possível sua aplicação, consistentes em: (i) ser o fato punível também no país de cometimento do delito; (ii) estar incluído entre aqueles crimes que a lei brasileira permite a extradição; (iii) não ter sido o autor absolvido no local do delito, cumprido pena ou não estar extinta a sua punibilidade; e (iv) o autor do delito ingressar no território nacional.

No caso do Vinicius Júnior, desde já, é possível observar duas das hipóteses previstas para a extraterritorialidade condicionada, quais sejam a de se tratar de delito que o Brasil se comprometeu a reprimir em tratado internacional, assim como se tratar de delito em que a vítima é de nacionalidade brasileira.

Isto porque, quanto à primeira hipótese, é importante destacar que o Brasil ratificou, por intermédio do Decreto nº 10.932/22, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, em que se compromete a garantir às vítimas de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância, reparação justa no âmbito criminal – artigo 10 do diploma -, o que se aplicaria ao caso em questão.

Já quanto à segunda hipótese, também não haveria qualquer dificuldade à sua aplicação, tendo em vista que Vinicius Júnior é brasileiro nato e foi alvo das ofensas racistas em território estrangeiro.

Na realidade, o verdadeiro desafio para aplicação da extraterritorialidade seria quanto às condicionantes exigidas.

Embora a conduta em questão seja considerada crime de ódio na Espanha – artículo 510 de la Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre, del Código Penal –, seria necessário que os agentes criminosos ingressassem em território brasileiro, para que fossem tomadas quaisquer medidas criminais.

E, convenhamos, a possibilidade de que estas pessoas venham ao Brasil é remota, o que inviabilizaria a extraterritorialidade almejada pelo ministro Flávio Dino – ainda que a proatividade e irresignação apresentadas tenham sido relevantes sob o aspecto de relações internacionais para que a Espanha tomasse as medidas necessárias e para coibir a ocorrência de situações semelhantes no futuro.

Importante considerar que o obstáculo imposto pela legislação não consiste em mero preciosismo do legislador pátrio, tendo em vista que um eventual procedimento criminal a ser instaurado no Brasil para averiguação de fatos ocorridos em outro país, cujos agentes estivessem fora do território nacional, provavelmente estaria fadado ao insucesso, em virtude da dificuldade para obtenção de elementos de informação contra os agentes.

Neste ponto, o desafio de reconstrução fática dos fatos numa persecução penal é bastante facilitado quando a apuração ocorre na própria localidade em que cometido o delito, tanto que é a regra geral de competência estabelecida pela nossa legislação processual.

No caso concreto, ainda que tenhamos imagens dos fatos, se apresentam algumas dificuldades operacionais para o processamento das diligências, na medida em que os depoimentos a serem tomados de testemunhas, as fontes documentais a serem colhidas e o interrogatório dos acusados teriam que ser realizadas por intermédio de cooperação-jurídica internacional, o que faria com que a persecução penal se perpetuasse no tempo.

Desta forma, sob os aspectos técnico-jurídico e operacional, a aplicação do princípio da extraterritorialidade em relação aos delitos cometidos contra o jogador Vinicius Júnior seria de dificílima consecução, o que revela o acerto na escolha do campo diplomático de relações internacionais, mediante imediatas e enérgicas manifestações realizadas pelas autoridades públicas brasileiras.

*Leonardo Magalhães Avelar, advogado criminalista e sócio fundador do Avelar Advogados.

*Bruno Sarrubbo Scalabrini, advogado criminalista no Avelar Advogados.

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