Opinião

Staking é security? Esfirra com orégano é minipizza?

Empreender na criptoeconomia exige a compreensão do que é valor mobiliário

15 de fevereiro de 2023

Artigo publicado originalmente na ConJur

Por Isac Costa*

Empreender na criptoeconomia exige a compreensão de um conceito jurídico importante: valor mobiliário (security, em inglês). Caso seu token já tenha sido lançado e o regulador entenda que se trata de valor mobiliário, você pode quebrar como a BlockFi, que sucumbiu após uma atuação da SEC, regulador norte-americano, fazendo evaporar o valuation de US$4,8 bilhões após sucessivas captações de US$1,4 bilhão. Por outro lado, caso você tenha planos de lançar um token, se este for valor mobiliário, poderá ter dificuldades para obter o registro junto às autoridades, não só pela burocracia, mas pelo custo do procedimento — as ofertas públicas costumam ser viáveis apenas para a captação de centenas de milhões de reais e não são globais, isto é, são circunscritas a uma jurisdição (B3 no Brasil, Nasdaq ou Nyse nos EUA etc.).

A tecnologia blockchain permite a criação rápida de um mecanismo de captação de recursos pela venda de tokens, com a estipulação de arranjos nos quais estes permitam a circulação de valor entre indivíduos e redes espalhados em todo o mundo, com caráter supranacional. Ainda, é possível conceber novos modelos de negócios, com a pulverização da propriedade de ativos de alto valor, financiamento coletivo de projetos,  mecanismos de prestação de garantias, novas fontes de crédito e, enfim, novas classes de investimentos alternativos. Contudo, a criatividade sujeita-se aos limites das normas existentes, que foram criadas com o intuito de promover a estabilidade financeira, a transparência, o tratamento equitativo dos investidores e a proteção destes em face de fraudes.

Para determinar se uma dada norma é aplicável ou não a uma relação econômica, precisamos compreender conceitos como instituição financeira (para as regras do Banco Central), valor mobiliário (para as regras da CVM), relação de emprego (para a incidência da Consolidação das Leis do Trabalho) e relação de consumo (para aplicação do Código de Defesa do Consumidor), dentre outras. O mapeamento dos elementos fáticos nas descrições normativas é trabalho de profissionais da advocacia e, quando surgem controvérsias, de autoridades do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Esse jogo de palavras pode definir o futuro de empresas, seus funcionários e investidores. E essas discussões, aparentemente em torno de noções de senso comum, precisam ser levadas a sério aqui e em outras jurisdições.

Libertar ou segurar o Kraken?

Nos EUA, o produto de staking-as-a-service oferecido pela Kraken teve de ser descontinuado, após o pagamento de US$ 30 milhões pela empresav, junto com outras obrigações e penalidades. Do ponto de vista do investidor, os tokens eram depositados no serviço oferecido pela Kraken com expectativa de remuneração de até 21% ao ano e, em alguns casos, a possibilidade de não receber nenhum retorno. Em abril de 2022, havia cerca de US$ 2,7 bilhões em ativos depositados para staking na Kraken, que obteve uma receita de aproximadamente US$147 milhões (sendo US$ 45 milhões apenas com tokens de investidores norte-americanos).

Para a SEC, o benefício econômico esperado pelos investidores era resultado da atuação determinante da Kraken, responsável pela custódia dos tokens e pelo pagamento dos valores. Haveria a oferta de facilidades inacessíveis para quem opta por prover staking por conta própria: o expertise da plataforma em gerenciar o processo, garantia de pagamentos, desnecessidade de valor mínimo de depósito, interface de usuário amigável. O que a Kraken apresentava como serviço foi considerado pela SEC como a obtenção de recursos para financiamento de um projeto (executado pela Kraken). Assim, o serviço foi considerado como security e, por isso, só poderia ser ofertado com registro junto à SEC.

O regulador norte-americano sinalizou que o registro era necessário para garantir que os investidores tivessem uma proteção mínima e acesso às informações necessárias para analisar os riscos do projeto, prevenindo a ocorrência de eventos com os observados em 2022, quando saques foram frustrados pela insolvência de plataformas de finanças descentralizadas. Para a SEC, a Kraken deixou de prover informações relevantes como sua situação econômico-financeira, taxas cobradas, lucros obtidos, riscos e seus mecanismos de mitigação, especialmente a gestão dos ativos depositados (onde e como seriam alocados).

O mecanismo de prova de participação (proof of staking) é importante para o funcionamento de protocolos, especialmente após a atualização do Ethereum em 2022, substituindo a necessidade de poder computacional pela propriedade de tokens, a fim de validar transações com remuneração em novos tokens. Assim, é um movimento natural do mercado a busca, por certos participantes, por tokens em empréstimo mediante a divisão dos resultados obtidos com os investidores. A decisão da SEC coloca em xeque a oferta desse tipo de produto.

Coinbase retruca

Insurgindo-se contra a decisão da SEC, a Coinbase emitiu comunicado ao mercado no sentido de que serviços de staking não são securities e que a SEC estaria extrapolando seu mandato legal sem efeito prático na proteção de investidores, prevenindo o acesso a produtos essenciais do mercado cripto e, em última análise, incentivando a migração dos recursos para outros países nos quais não há regulação.

A Coinbase enfatizou que staking é uma atividade fundamental para a dinâmica de ecossistemas cripto, permitindo que participantes sejam remunerados pelos seus esforços para validar a integridade das transações. Nesse contexto, quando as exchanges oferecem serviços de staking com base nos tokens depositados pelos seus clientes, todos ganham em princípio — as exchanges têm uma fonte adicional de receita, os investidores auferem remuneração pelos seus depósitos e os protocolos se fortalecem pela oferta de tokens para o mecanismo de prova de participação.

Além de sinalizar a possível inadequação do teste de Howey para criptoativos, a Coinbase questionou a existência dos elementos necessários para a qualificação de serviços de staking como securities: a) um investimento; b) um empreendimento conjunto; c) expectativa razoável de benefício econômico; e d) esforço de outros (que não o investidor).

Primeiro, não haveria um investimento porque os investidores não estariam “dando algo para receber algo em troca”, pois mantêm seus direitos de propriedade sobre os tokens utilizados para fins de staking.

Segundo, não haveria um empreendimento em conjunto porque o retorno dos usuários não dependeria dos retornos da Coinbase, mas sim do código dos protocolos.

Terceiro, a remuneração obtida seria o pagamento pelos serviços prestados ao protocolo e não um retorno sobre um investimento realizado — o papel da Coinbase (e a receita auferida por ela) seria decorrente da eliminação do custo de oferta de tokens por meios próprios pelos investidores.

Quarto, nos serviços de staking, não há um esforço de empreendedorismo ou gestão de um projeto que é financiado pelos recursos captados, não sendo possível constatar a existência de “esforços de terceiros” nos termos da jurisprudência sobre o tema — o modelo “as a service” é um serviço prestado e não um investimento.

Por fim, em seu comunicado, a Coinbase afirmou que não há assimetria de informação relevante na oferta de serviços de staking que justifique a imposição de um regime de registro e que essa exigência seria prejudicial ao crescimento da criptoeconomia nos Estados Unidos, levando investidores e recursos para outras jurisdições.

Polêmica na própria SEC

Hester Pierce, Commissioner da SEC, criticou publicamente a decisão da entidade. Para ela, a ação contra a Kraken não pode ser interpretada como uma vitória para os investidores e, em vez de elaborar diretrizes específicas sobre os programas de staking, orientando quais informações mínimas devem ser prestadas e até mesmo como deve ser o processo de registro, a SEC simplesmente optou por regular pela punição, agindo de forma “paternalista e preguiçosa” ao penalizar um serviço que tem gerado valor econômico por uma falha de registro. Uma atuação baseada em generalizações, na visão de Pierce, seria ineficiente e incapaz de capturar todas as variações nos serviços ofertados.

Ao contrário da União Europeia e do Reino Unido, o presidente da SEC (Gary Gensler) e a maioria dos Comissioners têm empreendido uma cruzada contra a maior parte dos produtos cripto que são ofertados a cidadãos norte-americanos. Em vez de desenhar uma regulação específica ou adotar um regime de sandbox regulatório, a SEC tem adotado uma abordagem de “punir para educar”. Enquanto o Congresso norte-americano não alterar a regulação do mercado de capitais para acomodar um novo conceito para criptoativos, a SEC tenderá a enquadrá-los na sua competência — Gensler já chegou a falar publicamente que a maioria dos criptoativos são securities, exceto o bitcoin. Para ele, segundo o ditado de um antigo presidente da SEC, “nenhuma empresa legítima deve ter medo do regulador” (uma variação do “quem não deve, não teme”).

E no Brasil?

Em 8.2.2023, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) ratificou o entendimento do Colegiado da CVM no caso ICOnic, mantendo a condenação imposta pela autarquia. A venda dos tokens NIC serviria para financiar uma plataforma de financiamento coletivo de startups cripto e os titulares do token poderiam deliberar sobre quais projetos receberiam investimentos. A empesa manteria um fundo de lastro para estabilizar as cotações do token. O que foi determinante para o enquadramento do NIC como valor mobiliário foi o fato de que a ICOnic depositaria periodicamente parte dos seus resultados no fundo de lastro e os investidores poderiam resgatar seus NICs do fundo — configurando uma remuneração baseada nos lucros do projeto.

Desde 2017, a CVM vem analisando vários casos de tokens que são objeto de consultas ou de denúncias, com o objetivo de determinar se há a) oferta pública (o que ocorre quase sempre, dada a divulgação dos tokens pela internet); b) benefício econômico prometido aos investidores; c) esforço de um empreendedor (ou terceiro) que é determinante para a geração desse benefício econômico. Essa verificação, transplantada da jurisprudência norte-americana (onde é conhecida como “teste de Howey”), reflete a necessidade de aplicar ou não o disposto no inciso IX do artigo 2º da Lei nº 6.385/1976 — que você precisa conhecer, querendo ou não. O entendimento mais recente do regulador brasileiro encontra-se no Parecer de Orientação CVM nº 40/2022.

Ainda é cedo para especular se a CVM irá agir de modo tão assertivo como a SEC nos Estados Unidos. O regulador brasileiro tem se mostrado mais aberta ao diálogo, disposta a compreender o mercado antes de sair aplicando multas na maioria dos casos, inclusive conduzindo um sandbox regulatório que tem produzido resultados interessantes, contando com as empresas BEE4, QR Votx Tokenizadora e SMU.

O futuro

O desenvolvimento do mercado cripto depende da validação de casos de sucesso e da adoção em massa de soluções baseadas em blockchain, de um efeito de rede. Toda vez que um regulador decide limitar a expansão da oferta de criptoativos, a insegurança jurídica aumenta, afastando instituições incumbentes que querem investir no setor e, em alguma medida, o público em geral.

Sem uma acomodação dessa inovação pela regulação vigente, o mercado cripto poderá continuar sendo visto por uma grande parcela da sociedade como algo marginal ou anárquico, uma terra sem lei.

Para alguns, a intervenção estatal é inconveniente e o mercado cripto pode seguir sem nenhuma regulação, por ser global, supranacional e ter como traços genéticos a liberdade e a privacidade. Para outros, é preciso dialogar com o mercado financeiro existente para a criação de uma ponte, permitindo a popularização dos criptoativos com segurança jurídica, proteção a investidores e garantia da estabilidade financeira.

Enquanto a SEC continuar com a regulação pelo enforcement (“pune-se para orientar”), o pleno desenvolvimento do mercado cripto não contará com a contribuição do mercado norte-americano, dependendo de desdobramentos em outras jurisdições, especialmente na União Europeia.

Por ora, nos resta acompanhar o debate sobre cachorro-quente ser sanduíche ou taco, esfirra com orégano ser minipizza ou Sonho de Valsa ser bombom ou waffle (pasme, essa discussão existe no direito tributário). Bom apetite!

Isac Costa é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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