Opinião

Um impeachment impossível em Santa Catarina

Processo contra governador carece de fundamentação suficiente para a sua continuidade

6 de maio de 2021

Por Vera Chemim*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O pedido de impeachment do governador de Santa Catarina parece carecer de fundamentação suficiente para a sua sustentação e continuidade. É certo que a aprovação de abertura de um processo de impeachment é de natureza eminentemente política, razão pela qual a decisão cabe ao poder político. Contudo, ela deve levar em conta o resultado das investigações de naturezas civil e criminal.

A aprovação da abertura de um processo de impeachment em face do governador de Santa Catarina contém elementos que, definitivamente, não alicerçam a tese do seu envolvimento em supostos atos ilícitos na compra de respiradores em razão da pandemia. Há de se levantar as duas hipóteses do ponto de vista jurídico que poderiam levar à sua responsabilidade e/ou culpabilidade no presente caso.

A primeira se refere a um suposto ato de improbidade administrativa correspondente à dispensa de licitação e de irregularidades no processo de compra daqueles respiradores, enquanto agente público responsável pela Administração Pública estadual. A segunda diz respeito aos supostos atos ilícitos de natureza penal que teriam sido cometidos pelo governador e outros agentes públicos e privados, quando da compra dos ditos respiradores.

Os contextos civil e penal que compõem a presente análise remetem, inevitavelmente, a uma interpretação de natureza constitucional, a qual constitui o pano de fundo desse artigo.

Fatos e provas colhidas nos inquéritos civil e penal que comprovam a inocência do governador
O governador, em conjunto com outros agentes públicos e privados, teria concorrido para a prática dos delitos previstos na Lei nº 8.666/1993 (dispensa de licitação ou inobservância de formalidades fora das hipóteses previstas em lei; fraude à licitação), na Lei 12.850/2013 (formação de organização criminosa com concurso de funcionário público), na Código Penal (peculato, corrupção passiva, prevaricação e corrupção ativa) e na Lei nº 9.613/1998 (lavagem de dinheiro).

Diante de tais acusações e consequente denúncia de suposto crime de responsabilidade imputado ao governador e demais envolvidos, não se podem ignorar as conclusões acerca das investigações feitas pela força-tarefa composta por Ministério Público, Polícia Civil e Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, que se utilizaram de todos os meios judiciais para elucidarem os fatos, tais como busca e apreensão em seu gabinete e residência oficial, além de prova oral e documental, sob todos os ângulos. Foram quebrados os sigilos telefônico, telemático, bancário e fiscal e feita a oitiva de testemunhas.

Aparentemente, haveria a possibilidade de o governador ter alguma participação no cometimento dos supostos atos ilícitos, razão pela qual o juízo da vara criminal de primeiro grau da Comarca de Florianópolis remeteu todas as informações constantes naquela investigação para o Superior Tribunal de Justiça [1], que, em conjunto com o Ministério Público Federal e a Policia Federal, aprofundaram aquelas investigações, tanto do ponto de vista de uma suposta responsabilidade civil do governador, por meio de inquérito civil, quanto do ponto de vista penal (inquérito criminal) [2].

O relatório da Polícia Federal apresentado ao ministro relator do caso, no âmbito do STJ, concluiu que não havia elementos suficientes de materialidade e autoria de crime, após exaustivas escutas de mensagens via WhatsApp e documentação apreendida por meio do mandado de busca e apreensão e demais provas.

A fundamentação foi robusta no sentido de afirmar que o governador não teria tido qualquer conduta que pudesse indicar o seu consentimento com a prática dos supostos atos criminosos e, ao tomar ciência da abertura de inquérito, determinou uma ação de constrição judicial. Os diálogos e mensagens não permitem deduzir que se tratavam de negociações ilícitas envolvendo a participação do governador. A quebra de sigilo bancário possibilitou a comprovação de transferências vultuosas de dinheiro, logo após o pagamento feito pela Secretaria da Fazenda da Santa Catarina à empresa Veigamed, que teria vendido os respiradores, configurando, assim, o crime de lavagem de dinheiro, sem, contudo, identificar qualquer aporte de valores recebido pelo governador ou no seu entorno.

Na busca e apreensão feita no seu gabinete e na residência oficial não foram encontrados quaisquer indícios de sua participação ou envolvimento nos delitos ora investigados. O Relatório de Análise de Material Apreendido nº 168/2020, anexo da decisão do relator no âmbito do STJ, contém diálogos em torno do episódio da compra de respiradores que permitem concluir pela inocência do governador e, da mesma forma, a força-tarefa já havia concluído pelo não envolvimento do governador nos procedimentos ilícitos de aquisição dos respiradores.

Não foram encontrados e-mails, ligações, mensagens ou qualquer outra forma de comunicação entre o governador e os empresários envolvidos que pudessem corroborar os indícios então existentes e, por fim, restou comprovado que o governador não participou ativamente do procedimento de compra dos respiradores, além de questionar junto ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina a viabilidade jurídica de prática de pagamento antecipado.

Por outro lado, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina concluiu pela prática de crime de “omissão dolosa” do governador e o enviou para a Procuradoria-Geral da República para subsidiar as investigações. Segundo a CPI, o governador teria tido conhecimento do pagamento antecipado sem as devidas garantias estabelecidas em lei e deixou de agir, como seria o seu dever enquanto autoridade responsável.

Contudo, o ministro relator do caso no âmbito do STJ afirmou que não haveria indicativo claro de que o governador tivesse conhecimento do pagamento antecipado sem as garantias exigidas para tal e as demais irregularidades que foram praticadas durante aquele procedimento. Ademais, conforme já se afirmou em linhas anteriores, aquela argumentação fica significativamente prejudicada em razão de restar comprovado o fato de que o governador consultou o Tribunal de Contas do Estado para saber da viabilidade jurídica daquele procedimento, além de ter remetido projeto de lei nesse sentido para a Assembleia Legislativa.

Por tais razões, não se têm indícios suficientes de participação do governador em crimes contra a Administração Pública e, diante de tal constatação, não se pode dar continuidade a uma persecução penal e ao oferecimento de qualquer denúncia. Diante do resultado das investigações, não é possível ajuizar uma ação penal e, por consequência, atribuir qualquer participação do governador nos crimes ora apurados, razão pela qual o MPF determina o arquivamento do inquérito relativamente à pessoa do governador e requer o declínio da competência para a vara criminal da Comarca de Florianópolis para o julgamento dos demais investigados.

De posse de toda a documentação e relatórios correspondentes às investigações realizadas por MPF e Polícia Federal, sem olvidar das investigações anteriores de MP, Polícia Civil e Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, o ministro relator do STJ determinou o arquivamento do inquérito criminal e os encaminhou para o presidente do Tribunal Especial de Julgamento do Estado de Santa Catarina, para serem anexados ao presente processo de impeachment do governador.

O contexto civil
O debate que envolve a responsabilidade civil do agente público, no exercício de sua função ou cargo na Administração Pública, pode ser de natureza objetiva ou subjetiva, a depender do caso em concreto. Na mesma direção, um ato de improbidade administrativa cometido por um agente público equivale a afirmar que ele provocou algum tipo de lesão à Administração Pública e, por tal razão, terá de ser responsabilizado do ponto de vista civil e político-administrativo, sem descurar da possibilidade de sofrer sanções penais.

Como o sujeito do pedido de impeachment é um governador, um suposto ato de improbidade administrativa seria similarmente enquadrado e punido por meio da Lei nº 1.079/1950 — denominada Lei do Impeachment —, cujo processo poderia culminar na confirmação de cometimento de um crime de responsabilidade, sem olvidar das prováveis sanções penais.

O caso em concreto diz respeito à compra emergencial de respiradores pelo governo do Estado de Santa Catarina, para fazer frente às necessidades urgentes das pessoas acometidas pela Covid-19, tendo em vista a gravidade da crise sanitária. Diante daquela situação excepcional, a legislação federal permite que se adquiram bens ou serviços sem licitação, desde que atendidas as condições exigidas para tal, o que, de per si, já favorece o ato administrativo do governador, no sentido de determinar aquela compra. Essa permissão é prevista no artigo 4º e seguintes da Lei nº 13.979/2020, que dispõem sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da Covid-19 desde 2019.

A despeito daquela previsão, já se constatou que o governador sequer participou dos procedimentos de compra dos respiradores, restando comprovado, inclusive, a ausência de sua assinatura no processo de compra. O inquérito civil aberto no âmbito do Ministério Público da Capital comprovou por meio das investigações realizadas graves e diversas ilicitudes praticadas por agentes públicos e privados no processo de dispensa de licitação daquela compra.

Concluiu-se pela ausência de ato de improbidade administrativa por parte do governador, no que se refere à compra dos respiradores, porque não haveria provas de que ele teria conhecimento dos trâmites administrativos que envolveram a contratação da empresa Veigamed e, principalmente, das ações e omissões que possibilitaram a dilapidação do patrimônio público. Diante daquela constatação, não se pode comprovar que o governador teria conhecimento dos atos ímprobos e se mantido inerte.

Portanto, não há o que se falar de responsabilidade objetiva, uma vez que o governador não pode ser diretamente responsabilizado por atos ilícitos de agentes públicos de hierarquia inferior, a menos que tivesse concorrido ou se omitido com dolo ou culpa.

Na mesma toada, o caput e o inciso I do artigo 71 da Constituição do Estado de Santa Catarina preveem que:

“São atribuições privativas do governador do Estado:
“I — exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior [3] da administração estadual”, o que equivale a ratificar o fato de que a responsabilidade daqueles procedimentos correspondentes ao processo de compra dos respiradores seria de um dos seus secretários de Estado e, porquanto, uma hierarquia imediatamente inferior à natureza do seu cargo.

Ademais, a Lei de Improbidade Administrativa prevê em seu artigo 5º a responsabilidade subjetiva quando houver lesão ao patrimônio público por ação ou omissão dolosa ou culposa do agente público ou de terceiro, exigindo o seu ressarcimento. Da mesma forma, não se obtiveram indícios suficientes que pudessem comprovar a sua participação nos demais atos ilícitos de natureza penal, determinando-se, portanto, o seu arquivamento.

Em primeiro lugar é imprescindível que se constate o compartilhamento de provas no âmbito dos inquéritos civil e criminal que possibilitaram a comprovação de inexistência de indícios suficientes de ato de improbidade administrativa, assim como de autoria e materialidade de crime comum (infração penal) atribuído ao governador. O processo de impeachment se compõe de um juízo político acerca da conduta de uma autoridade pública, seja ela presidente da República, ministros de Estado ou governador de ente federado, quando devidamente comprovada a sua ilicitude do ponto de vista político-administrativo. Nessa direção, o artigo 85 da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre o tema, quando se trata de crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República, remetendo, nesse caso, à Lei nº 1.079/1950 para o seu processamento e julgamento.

No presente caso, trata-se de um processo de impeachment do governador do Estado de Santa Catarina, também previsto no artigo 74 e seguintes da referida lei e na Constituição daquele estado. Sendo assim, os crimes de responsabilidade elencado, tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na Lei nº 1.079/1950 não podem ser imputados ao governador, por uma razão óbvia: as provas de toda a ordem colhidas no inquérito civil (principalmente) e no inquérito criminal não permitem acolher qualquer tipo de crime de responsabilidade que possa ser atribuído ao governador. Trata-se de um elo jurídico-constitucional de extrema relevância, uma vez que aquelas investigações constituem a fundamentação indispensável para a continuidade de um processo de impeachment.

Partindo do pressuposto de que não há ato de improbidade administrativa, do ponto de vista civil-administrativo, e tampouco de infração penal passível de enquadramento jurídico, não há como se cogitar sequer, de um crime de responsabilidade. Tendo em vista as provas colhidas naquelas investigações e que isentam a conduta ilícita do governador, especialmente no que diz respeito a um dos principais argumentos levantados por alguns dos membros do Tribunal Especial Misto responsável pelo julgamento do pedido de impeachment, que remetem a uma omissão dolosa do governador, as investigações no âmbito do inquérito civil dão conta da total ausência de sua responsabilidade, tanto objetiva quanto subjetiva, conforme se comprovou.

Trata-se de garantia constitucional dos direitos fundamentais, cujo pano de fundo remete à dignidade humana e à igualdade perante todos. Ignorar a decisão de um tribunal superior embasada por investigações de natureza civil e penal do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, da Policia Civil e do Tribunal de Contas daquele Estado, corroborada pelo aprofundamento das investigações pelo Ministério Público Federal (PGR), em conjunto com a Policia Federal, além de posteriormente acolhida pelo ministro relator do Superior Tribunal de Justiça, determinando o arquivamento de ambos os inquéritos (civil e criminal), seria instalar um Estado totalitário por excelência em pleno regime democrático.

[1] Detenção de foro privilegiado em razão do cargo de governador, conforme previsão do artigo 105, Inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988.

[2] O MPF teve autorização para novo mandado de busca e apreensão e quebre de sigilos.

[3] Grifo da autora.

Vera Chemim é advogada constitucionalista e mestre em Direito Público Administrativo pela FGV.

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