Opinião

Tudo junto, misturado e batido

Indicação ao STF não é mais baseada apenas em critérios objetivos há tempos

6 de outubro de 2020

STF/Divulgação

Por Vera Chemim*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Passou o tempo em que o Poder Judiciário e principalmente o STF cumpriam a sua jurisdição constitucional sem contatos interpessoais dos seus membros com os demais Poderes Públicos.

A indicação de seus ministros pelo Presidente da República passava praticamente desapercebida do grande público e os Poderes Públicos envolvidos (Executivo para a indicação e Legislativo para a realização de sabatina) cumpriam o seu papel, a despeito deste último apenas executar um protocolo meramente formal.

Tratava-se de uma postura correta e relativamente discreta, uma vez que o Poder Judiciário e mais especificamente o STF não pode e não deve sofrer qualquer tipo de intervenção política, isto é, dos Poderes Executivo e Legislativo, a não ser o que é previsto restritivamente na Constituição Federal de 1988, respectivamente, indicação e sabatina.

Mais uma vez, a Operação Lava Jato serve de divisória do tempo, ou seja, como era antes e como ficou após a sua atuação.

As observações acima remetem a um tempo anterior àquela operação, a qual provocou uma mudança radical de conduta, levando a um autêntico tsunami de natureza política e que vem intervindo cada vez mais num poder que deveria manter a qualquer custo, a sua essência técnica e apolítica para garantir a segurança jurídica e o cumprimento rigoroso da Constituição e da legislação infraconstitucional.

Ao invés disso, o que se constata é a constante e crescente promiscuidade entre o Poder Executivo e de modo especial o Poder Legislativo – poderes políticos por excelência – e o Poder Judiciário e mais precisamente, o STF que é a sua mais alta instância.

Partindo do pressuposto constitucional de que o STF enquanto instância máxima de um Poder Moderador precisa se manter equidistante dos poderes políticos para evitar a sua contaminação política, o que se depreende da atual conjuntura é indubitavelmente, uma aproximação mesclada por interesses e paixões mútuas, onde o que se pretende é a autoproteção de seus membros, incluindo-se aí, todos os Poderes, com a finalidade precípua de manter acima de tudo o status quo que sempre predominou na política brasileira.

Não se pode conceber que ministros do STF se reúnam com membros-chaves dos Poderes políticos para decidir o que é melhor para a satisfação de seus objetivos pessoais e de seus grupos de interesse, no sentido de garantir a impunidade de seus pares, perante o Sistema de Justiça do país.

Trata-se realmente, de uma aliança estratégica que já vem sendo cuidadosamente planejada, visando incontinenti um círculo protetor permanente e suficientemente capaz de resistir a qualquer ameaça que possa interferir em seu núcleo.

A indicação do futuro ministro do STF em substituição a Celso de Mello não está sendo aferida apenas por critérios objetivos, de natureza exclusivamente técnica.

A despeito de seus méritos já divulgados, não se pode olvidar o fato de que existiriam juízes de carreira que a rigor, estariam muito mais aptos para aquela vaga, uma vez que teriam muito mais experiência na magistratura, o que obviamente, constitui um fator relevante e diferencial, além da necessidade constitucional de “notório saber jurídico” exigido para o cargo em questão.

Ao ser alçado para uma responsabilidade máxima de magistrado do STF, o futuro detentor daquele cargo precisa inquestionavelmente, de uma larga experiência na magistratura pari passu com um “múltiplo e profundo conhecimento jurídico”, haja vista a multiplicidade de temas constantes nos inúmeros processos que ali desembocam, além da variada gama de ações e recursos processuais constitucionais propriamente ditos, penais, civis, tributários e outros.

Ademais e muito mais relevante são as ações de controle abstrato de constitucionalidade que demandam sem dúvida, todos os requisitos já elencados para a sua análise e julgamento, o que por si só clamam por um magistrado por excelência.

As observações aqui externadas remetem à preocupação com a composição da Corte, cujas atribuições e responsabilidades constitucionais de cada um dos seus membros não podem ser relativizadas, sob risco de perder a sua credibilidade e respeito enquanto instituição máxima do Poder Judiciário de um Estado Democrático de Direito.

Os bastidores agora escancarados a quem quiser ver, acenam para uma combinação de elementos nada convencionais e que representam o fechamento de um ciclo em que se tentou inutilmente, oxigenar a administração pública brasileira e o reinício da velha e antiga política paternalista, cujos tentáculos certamente renascerão ainda mais fortes e imortais, a ponto de extirparem qualquer manifestação contrária a sua existência.

Ademais o Estado Democrático de Direito pressupõe alternância de poder, o que não se confirma necessariamente na intenção de reeleição do atual Presidente do Congresso Nacional, cuja motivações são óbvias, no sentido de fazer frente a qualquer ameaça que possa vir a prejudicar os familiares do Chefe do Poder Executivo e alguns dos seus membros, do próprio Legislativo e particularmente, do STF.

Na mesma direção, o futuro ministro do STF terá como principal missão reforçar o time antilavajato e por consequência livrar os representantes políticos dos dois poderes, de possíveis punições decorrentes de seus atos passados e presentes, sob a pretensa alegação de pertencerem aos ”garantistas”, isto é, aqueles que supostamente cumprem estritamente as normas constitucionais e legais.

A esse respeito é oportuno que se esclareça o óbvio: todos os membros do Poder Judiciário e do Sistema de Justiça (Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e Privada) devem ser ”garantistas”, termo que representa antes de tudo um inútil pleonasmo, uma vez que todos os operadores do direito devem cumprir as normas constitucionais e legais.

O ponto sensível que remete à Operação Lava Jato é o fato de que a sua atuação se fundamenta no cumprimento da Constituição Federal e da legislação em consonância com os precedentes jurisprudenciais e a realidade fática, o que equivale a deduzir que a dita operação utiliza institutos jurídicos do sistema romano-germânico “civil law” em conjunto com os institutos do sistema anglo-saxão “common law”.

Em outras palavras: todos os institutos jurídicos são considerados como fontes do direito e devem ser aplicadas no dia a dia, até porque é crescente a tendência mundial de utilização dos dois sistemas de modo a emprestar maior eficiência e eficácia ao direito e a serem reconhecidos como institutos de igual relevância jurídica pari passu com a Carta Magna e as leis.

A partir do momento em que se dá igual primazia aqueles institutos (sejam eles do civil law ou do common law), a sua aplicabilidade se diferencia inevitavelmente do “mainstream” (do direito convencional praticado no Brasil) e causam polêmica, especialmente quando se trata de crimes de natureza complexa, como é o caso de formação de organizações criminosas, onde nem sempre se consegue prova direta e sim indireta, por meio dos executores de tais atos ilícitos e provas, como as documentais, periciais e outras.

Esse é pois, o impasse criado em torno dos excessos da Operação Lava Jato e que acabou titulando a Primeira Turma do STF, como “punitivistas” em contraposição com a Segunda Turma, cujos membros seriam os “garantistas”, ratificando uma dicotomia inexistente e sobretudo ilógica no âmbito do direito.

Tais imbróglios estão aparentemente superados no Plenário do STF, embora a atual escolha do substituto de Celso de Mello remeta novamente para o recrudescimento dessa questão que lamentavelmente realimenta o viés político na mais alta instância do Poder Judiciário.

É a peça de xadrez que vai preencher com maestria um jogo político, cujas interfaces são múltiplas e ilimitadas, contrastando flagrantemente com o que se espera de um membro da mais alta Corte daquele Poder.

*Vera Chemim, advogada constitucionalista com mestrado em Administração Pública pela FGV-SP

 

Foto: STF/Divulgação

 

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