Opinião

Tribunal do Júri: a utilização do inquérito policial em plenário

É fundamental municiar julgamento com garantias fomentadoras de uma maior racionalidade

11 de março de 2021

Por Daniel Ribeiro Surdi de Avelar e Rodrigo Faucz Pereira e Silva*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O inquérito policial pode impactar na formação da convicção dos jurados? Se sim, essa influência é indevida? Qual a função do inquérito? São questões centrais que, para serem devidamente ponderadas, é necessário analisar em ordem inversa.

O inquérito policial é uma fase administrativa em que não vigora o princípio do contraditório ou da ampla defesa. O objetivo principal é subsidiar o Ministério Público para eventual oferecimento da denúncia. Como não poderia ser diferente, a polícia judiciária investiga o fato utilizando técnicas e métodos próprios para a identificação do autor e as circunstâncias do delito. Ao final, elabora um relatório que justifica a investigação realizada, aponta os elementos informativos colhidos e indica a conclusão. Portanto, o inquérito policial serve para que o MP forme a sua opinio delicti e avalie se existem elementos para oferecer a denúncia, a qual servirá para assinalar o que deverá provar no curso da persecutio criminis in judicio.

Com o recebimento da denúncia, o MP tem a carga de provar — além da dúvida razoável — a hipótese fática acusatória e a responsabilidade do acusado. E, como se sabe — sem adentrar nas especificidades da primeira fase do procedimento do júri — importam os elementos que foram produzidos judicialmente. À vista disso, o artigo 155 do CPP prevê que o magistrado deverá formar sua convicção com base nas provas produzidas em juízo.

Em consonância com o primado de que o juiz deverá formar a sua convicção amparado nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, o pacote “anticrime” [1] prevê, no §3º do artigo 3º-C, que “os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento (…)”. Isto é, apenas o juiz de garantias, responsável pela fase preliminar do processo e pela legalidade da investigação policial, terá acesso ao inquérito policial. Propicia-se, assim, que a instrução e a decisão do caso seja tomada por um magistrado isento, o qual sequer terá acesso aos elementos indiciários produzidos na fase da investigação [2], excepcionando-se as provas irrepetíveis e as medidas de obtenção ou de antecipação de provas.

Dessa maneira, os elementos indiciários que foram gerados durante a investigação, em especial, as provas orais, não poderão mais ser usados e valorados no processo. Assim, como regra geral de validade [3], a prova deverá ser: 1) produzida em contraditório durante a instrução judicial; 2) pelas partes (acusação e defesa); e 3) diante do julgador, seja ela um magistrado togado ou leigo. Aqui está o cerne da questão! Em respeito às garantias da imediação [4] e da oralidade, os jurados deveriam formar suas convicções (avaliar a credibilidade da prova) baseados na instrução probatória realizada perante eles, bem como nas sustentações das partes e na autodefesa do acusado.

Esse seria o caminho natural para um modelo de júri que busca ser democrático. Mas por qual razão o Tribunal do Júri se afasta deste ideal? Simples, pois entre outros fatores, ainda permite — e muitas vezes privilegia — a utilização do inquérito policial em plenário. Sob o manto de argumentos falaciosos e numa espécie de gangorra argumentativa, as partes dão maior ou menor credibilidade a relatos que foram colhidos distantes do contraditório e que podem ser decisivos para formar a convicção dos jurados, especialmente quando eles são levados a superavaliar informações ou a raciocinar de maneira equivocada, privilegiando um dado relato pelo simples fato de ter sido colhido mais próximo aos fatos.

Se as alterações da Lei 13.964/2019 vêm para amenizar o sistema inquisitorial ainda presente no nosso CPP, impossibilitando que os juízes togados tenham acesso ao inquérito policial, é fundamental apontar que a importância para o Tribunal do Júri é ainda maior. É imprescindível municiar o julgamento pelo júri com garantias epistêmicas fomentadoras de uma maior racionalidade que ilumine o caminho para uma decisão justa, livre de informações pouco confiáveis ou de forte apelo sentimental [5]. Um desses instrumentos toma corpo na vedação da utilização dos elementos investigativos no júri como forma de mitigar a sua influência indevida.

Tal situação foi discutida no PLS número 156/2009, que busca instituir o novo CPP. Em seu artigo 391, inciso III, prevê que as partes sequer poderão, durante os debates, fazer referência “aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal, ressalvada a prova antecipada”.

Como já sustentamos, “para que o júri disponha de uma verdadeira originalidade cognitiva, deveriam ser retirados dos autos todos os elementos informativos colhidos na fase investigativa, mantendo-se apenas as provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis” [6]. Com isso, restariam fortalecidas as garantias da oralidade e da imediação, propiciando-se que a credibilidade probatória pudesse ser melhor sopesada pelo Conselho de Sentença, longe de uma oratória inebriante que fomentasse raciocínios inferenciais a partir de elementos de escassa confiabilidade e validade jurídica [7].

Assim, a premissa da imediação — identificada como regra geral para todo o julgamento perante o júri — apenas poderia ser superada em hipóteses excepcionais, tais como o óbito da testemunha ou sua não localização (para intimação ou condução para a sessão plenária), circunstâncias que tornariam a prova não repetível. Dessa forma, como exceção à regra, os depoimentos colhidos na fase do sumário de culpa — sob o crivo do contraditório — atuariam de forma subsidiária para: 1) suprir a impossibilidade da sua produção diretamente em plenário; ou 2) confrontar o grau de credibilidade de um dado testemunho, especialmente quando o relato da testemunha em plenário destoasse da versão anteriormente fornecida no sumário de culpa ou de outras testemunhas.

Em uma visão ainda mais condizente com o disposto no artigo 8.2, letra “f”, da CADH, um importante segmento da doutrina nacional aponta que a utilização substitutiva dos depoimentos colhidos na fase da investigação preliminar ou do sumário de culpa importaria em verdadeira afronta ao direito ao confronto (right of confrontation), identificado como a prerrogativa de que toda prova oral incriminadora seja produzida na presença do acusado, em uma audiência pública conduzida pelo julgador, facultando-se a realização do exame cruzado [8].

Não hesitamos em concluir — em menor extensão do que a corrente acima anunciada — que a exclusão dos elementos de informação visa a evitar uma indesejável confusão cognitiva na mente do jurado, o qual não está preparado para identificar o alcance e a finalidade das informações colhidas na fase inquisitorial. Se a jurisprudência vem reconhecendo a impossibilidade da pronúncia do acusado quando não há provas confirmatórias dos elementos colhidos no inquérito [9], não há lógica jurídica em admitir que os jurados tenham a possibilidade de utilizar esses elementos para decisão no júri.

Este artigo faz parte da série “Tribunal do Júri”, produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras “Plenário do Tribunal do Júri” e “Manual do Tribunal do Júri”, da Editora RT.

[1] Lei 13.964/2019, ainda parcialmente suspensa por ordem do Min. Luiz Fux do STF, relator das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.

[2] Essa matéria não é nova. O Prof. Antonio Fernandes já lecionava que: “Constitui extravasamento da função da fase de investigação a sua utilização para a condenação. Para evitar que isso aconteça, tendem as legislações a impedir a juntada dos autos de investigação aos autos do processo. Atribuem, contudo, valor probatório a diligências investigatórias que, por sua natureza, são irrepetíveis, ou a medidas que, em virtude de urgências, devem ser antecipadas. Eventual utilização indevida dos elementos informativos da investigação como prova no julgamento constitui espécie de ilicitude, a ilicitude fisiológica, em que, apesar de o ato ser idôneo para a fase em que foi praticado, é inidôneo para a fase posterior”. (FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 307). Atualmente também é defendido por Aury Lopes Jr: “A garantia da ‘originalidade’ decorre da função endoprocessual dos atos da investigação, que possuem eficácia interna à fase, para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no curso da investigação. Para tanto, defendemos a adoção do sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação do julgador pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial (portanto, em segredo, sem defesa ou contraditório e não judicializado)”. (LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 15ª. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 852-853).

[3] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos, 6ª. ed., Florianópolis, EMais, 2020, p. 767.

[4] Conforme esgrima Décio Alonso Gomes: “(…) o princípio da imediação consiste na contemporânea e contínua interação comunicacional entre juiz, partes e provas (pessoais), a fim de que o julgador possa conhecer pessoal e diretamente as alegações das partes e o acervo probatório do processo, desde sua iniciação”. (GOMES, Décio Alonso. Prova e Imediação no Processo Penal. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 56).

[5] Tratando das exclusionary rules do sistema anglo-americano, Marcella Nardelli explica que essas regras têm relação com o fato de que o “impacto negativo da prova sobre o jurado pode ser mais forte do que o seu real valor probatório”. (NARDELLI, Marcela Mascarenhas. A prova no Tribunal do Júri. Uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2019, p. 96).

[6] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 116.

[7] A total exclusão dos elementos indiciários, em especial, da prova testemunhal, apenas se tornará efetiva com alterações legislativas que impeçam, que por vias transversas, que os jurados tenham acesso ao conteúdo da investigação. Assim, seria necessário, dentre outros: (i) impedir o acesso às decisões cautelares e outras decisões onde se fizesse constar a transcrição do conteúdo da prova oral colhida na fase investigativa; (ii) impedir a juntada pelas partes do caderno investigativo em fases futuras do rito processual, por exemplo, no momento do artigo 479 do CPP; (iii) impedir que durante as sustentações orais as partes fizessem referência à prova oral colhida na investigação preliminar. Porém, nada impede que esse debate ganhe força desde já, buscando-se uma melhor adequação do rito do Tribunal do Júri ao sistema acusatório.

[8] GOMES FILHO, Antonio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, RL-1.61; MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[9] Por exemplo: STJ, HC 341.072/RS, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, j. em 19/04/2016; STJ, AgRg no REsp 1.740.921/GO, Rel. Ribeiro Dantas, j. em 06/11/2018.

Daniel Ribeiro Surdi de Avelar é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e EMAP) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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