Opinião

‘Teoria do desvio produtivo’ deve ser analisada com cautela

Resolução extrajudicial deve ser priorizada

20 de agosto de 2020

Por Letícia Piasecki Martins Lucas Melo Santos

Artigo publicado originalmente na ConJur

A “teoria do desvio produtivo do consumidor”, em síntese, consiste na tese de que a “perda do tempo e da energia” dos consumidores na busca da resolução de conflito com os fornecedores ensejaria a possibilidade de pedido de indenização, ou seja, a ocorrência de um desperdício de tempo — que seria útil ao consumidor para outras atividades — daria azo ao pedido de indenização.

Não obstante o respeito à teoria em comento, as considerações em tela buscam esclarecer e até relembrar que o próprio Código de Defesa do Consumidor exige o contato prévio dos consumidores com os fornecedores. Uma das hipóteses é a exigência de reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca para fins de obstar a decadência, nos termos do artigo 26, CDC, ou seja, para fins de constituição do direito.

O artigo 18 do CDC dispõe sobre a responsabilidade por vício do produto e do serviço e determina que o consumidor deve, primeiramente, entrar em contato com o fornecedor para que este tente sanar o vício — em prazos que variam entre 30 e 180 dias. E isso é o que expomos acima, no sentido de que o próprio CDC exige um contato prévio do consumidor com o fornecedor. Nesse sentido, é contraditória a indenização com base na “perda do tempo livre” para resolução extrajudicial, quando o próprio CDC, exige um contato inicial e extrajudicial do consumidor com o fornecedor.

Além disso, como se sabe, o governo conta com importante plataforma para solução de conflitos [1]), além de projetos de integração com a plataforma PJe (plataforma desenvolvida pelo CNJ e utilizada pela maioria dos tribunais de Justiça para a tramitação de processos judiciais [2]).

Nessa linha, inúmeros são os entendimentos dos tribunais sobre a prévia necessidade de tentativa de resolução de conflito por meios extrajudiciais, sob pena de extinção do processo [3] [4] [5] [6] [7] sem resolução do mérito, por ausência de interesse processual, ou seja, o autor carece de interesse processual por ausência de pretensão resistida, caso não busque a resolução do conflito de maneira administrativa, seja pelas plataformas digitais conforme mencionado acima, seja pelos meios colocados à disposição pelo próprio do fornecedor (SAC, ouvidoria, e-mails, redes sociais, entre outros). Em outras palavras: o fornecedor não pode ser condenado, por exemplo, a pagar uma indenização pelo fato do cliente ter precisado buscar a ouvidoria da empresa para relatar eventual problema ou insatisfação e iniciar tratativas de resolução, ainda que a solução não seja imediata, sob pena de desestímulo a investimentos em canais de atendimento, em soluções internas para resolução de problemas.

Dito isso, concluímos que o pedido de indenização baseado na “teoria do desvio produtivo” deve ser analisado com parcimônia e levando-se em conta que o próprio CDC, bem como o próprio Judiciário, sem qualquer violação de acesso à Justiça, estabelecem que o consumidor primeiramente entre em contato com o fornecedor para solucionar o conflito, o que, a depender da complexidade e documentos envolvidos ou necessidade de perícias etc., não ocorrerá apenas com um telefonema e demandará, obviamente, outros contatos entre consumidores e fornecedores, o que não pode ser visto ou concluído como uma espécie de calvário que o consumidor precisa seguir, mas como formas extrajudiciais e de diálogo na busca de um consenso sem a necessidade de que se recorra ao Judiciário, principalmente, para exigir uma indenização pela necessidade de contato com o fornecedor, já que até mesmo para fins de constituição de direito e obstar decadência a lei exige prévio contato. Frisa-se que também deve ser analisado, antes da concessão de tal modalidade de indenização, se o pleito extrajudicial do consumidor que eventualmente não venha a ser resolvido está pautado em crença daquele em um legítimo direito ou se estão presentes situações que revelam a inexistência do direito que o consumidor alega ou acredita possuir.

Em outras palavras, o próprio CDC (artigos 18 e 26), recentes entendimentos dos tribunais e a integração entre a plataforma consumidor.gov.br e Poder Judiciário, com a consequente necessidade de o consumidor buscar a resolução alternativa do conflito pelas vias extrajudiciais, sob pena ação ser extinta, sem resolução do mérito, impedem a concessão de indenização com base na alegação de que o consumidor teve seu tempo livre desviado para tentar solucionar a questão.

 

[1]. https://consumidor.gov.br/pages/conteudo/publico/1

[2]. https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1570544381.96

[3] DIREITO CIVIL (899) – Responsabilidade Civil (10431) – Indenização por Dano Moral (10433 DIREITO DO CONSUMIDOR (1156) – Contratos de Consumo (7771) – Bancários (7752). (…) há que se exigir da parte, ao ajuizar a ação, a comprovação de que houve uma injustificada recusa ao atendimento de sua pretensão, sendo esta demonstração uma verdadeira condicionante para admissibilidade do seu pedido e, por consequência, requisito inafastável para a apreciação do mérito. (…) as limitações orçamentárias impõem a cooperação de todos os agentes para que antes de recorrerem ao Poder Judiciário busquem as vias alternativas de composição de litígios, bem mais baratas, contribuindo assim para que as demandas judicializadas possam ser apreciadas dentro de um prazo razoável de duração, o que é benéfico a todos. (…) indefiro a petição inicial, extinguindo o feito sem resolução do mérito, nos termos do artigo 321, parágrafo único, do CPC, por entender que não demonstradora o interesse de agir, necessário à admissão do seu pedido, ainda que facultado prazo este fim. (1ª Vara do Juizado Especial Cível da Comarca de Santa Luzia – MA – Processo nº 0802095-76.2019.8.10.0057, Juíza Marcelle Adriane Farias Silva, Data da Publicação: 29/03/2020)

[4] APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSUAL CIVIL. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. PROJETO SOLUÇÃO DIRETA CONSUMIDOR. NÃO ATENDIMENTO DA DETERMINAÇÃO JUDICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO MANTIDA. (…) Recusa injustificada na adoção do método extrajudicial para resolução do conflito que caracteriza a falta de interesse processual. Sentença de extinção, sem resolução do mérito, mantida. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível, Nº 70082503152, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em: 03-09-2019)

(TJ-RS – AC: 70082503152 RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Data de Julgamento: 03/09/2019, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: 05/09/2019)

[5] APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO ORDINÁRIA DE CANCELAMENTO DE REGISTRO COM PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. DETERMINAÇÃO DE SOLUÇÃO DO CONFLITO DE CONSUMO POR MEIO DO PROJETO SOLUÇÃO DIRETA-CONSUMIDOR NÃO ATENDIDA. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL CONFIGURADO. EXTINÇÃO DO FEITO. O interesse processual só existe quando a parte necessita da atividade do Estado-Juiz para a tutela do direito reclamado, que, de outra forma, não seria obtida, situação não verificada no caso concreto, na medida em que a autora optou por não atender a determinação judicial de prévia tentativa de solução do litígio por meio do projeto solução direta-consumidor (…), impondo-se a manutenção do decreto de extinção do feito, com fundamento no artigo 485, incisos I e VI, do Código de Processo Civil. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70080869910, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Julgado em 02/04/2019).

(TJ-RS – AC: 70080869910 RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Data de Julgamento: 02/04/2019, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/04/2019)

[6] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALEGAÇÃO DE DANO MORAL EM DECORRÊNCIA DE SUPOSTA NEGATIVAÇÃO INDEVIDA. PRETENSÃO DE INEDNIZAÇÃO NO PATAMAR DE R$15.000,00. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR INEXISTÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. ISSO PORQUE A PARTE AUTORA, MESMO DEVIDAMENTE INTIMADA, NÃO TERIA FEITO PROVA DE QUE TENTOU RESOLVER A QUESTÃO NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. APELO DA PARTE AUTORA, QUE PRETENDE A CASSAÇÃO DA SENTENÇA, E O RETORNO DO FEITO AO JUÍZO DE ORIGEM, PARA O REGULAR PROSSEGUIMENTO DO FEITO. RECURSO QUE NÃO MERECE AMPARO.

(TJ-RJ – APL: 02115297320138190001, Relator: Des(a). MARCOS ANDRE CHUT, Data de Julgamento: 10/07/2019, VIGÉSIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)

[7] DIREITO CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – RELAÇÃO CONTRATUAL – DIREITO DO CONSUMIDOR – RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR – INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL Analisando detidamente os autos percebe-se que, conforme bem explicitado na peça contestatória, o meio correto de o autor informar o ocorrido e solicitar a troca do produto não foi realizado. Informa o autor o número de um telefone, o qual informa ter entrado em contato, porém sem nenhum número de protocolo, nem qualquer outra informação que desse embasamento ao alegado. No mais, quando da compra do objeto, é de praxe haver recomendações acerca do procedimento a ser adotado em casos dessa natureza, o que não foi realizado pelo autor. Inobstante se tratar de relação de consumido, é necessário que a parte demandante comprove o mínimo dos fatos alegados. Posto isso, e por tudo que dos autos constam, por reputar a decisão mais justa e equânime que o caso requer, julgo improcedente os pedidos formulados na exordial, com fulcro no Artigo 487, I, CPC.

(Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Estância – SE – Processo nº 201951500182 – Número Único: 0000399-14.2019.8.25.0027, Juiz Luiz Manoel Pontes, 01/04/2019)

Letícia Piasecki Martinsé advogada da área de Relações de Consumo do escritório Braga Nascimento e Zilio Advogados e pós-graduada em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW).

Lucas Melo Santos é estagiário da área de Relações de Consumo do escritório Braga Nascimento e Zilio Advogados e graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

 

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