Opinião

O trágico adiamento da LGPD

Brasil corre o risco de ser preterido por investidores estrangeiros

6 de julho de 2020

Por Marina Dias*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O início de vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no Brasil já passou por vários adiamentos. O desafio de sua implementação pelas entidades públicas e provadas ficou ainda mais complexo em razão da pandemia do coronavírus. A iminente recessão econômica e o contexto de incertezas pressionaram o governo a prorrogar, mais uma vez, sua entrada em vigor.

Nesse propósito, duas iniciativas foram adotadas pelo poder público.
A primeira consiste na Lei n° 14.010/20, sancionada dia 12 de junho pelo presidente da República, com o objetivo de postergar as penalidades da LGPD para agosto de 2021. Em paralelo, foi adotada a Medida Provisória nº 959/20, que propôs a prorrogação de todos os dispositivos da LGPD até maio de 2021. Publicada no Diário Oficial da União em 29 de abril, a MP deve tramitar e – se aprovada pelo Legislativo – entrar em vigor em até 120 dias. No entanto, caso não seja ratificada pelo Congresso, a LGPD já entrará em vigor em agosto deste ano, com penalidades previstas a partir de agosto de 2021.

Importante recordar neste contexto a origem da LGPD, que surgiu na esteira da promulgação da General Data Protection Regulation (GDPR), em 2016, pela União Europeia.

Desde então, o Brasil se viu compelido a se adequar aos novos tempos e acelerar a edição de sua nova legislação.

À semelhança da regulamentação europeia, a LGPD, promulgada em 14 de agosto de 2018, propôs remédio para a premente necessidade nacional de um marco regulatório geral e abrangente, que otimizasse a garantia constitucional à privacidade e à intimidade, estabelecendo limites para o tratamento de dados. De acordo com a lei, é dever das empresas brasileiras apresentar um programa de governança de dados eficiente e apto a evidenciar zelo e boa-fé no tráfego de informações pessoais.

Prevendo um difícil processo de adaptação dos empresários – e dos próprios entes públicos – à cultura instituída pela LGPD, o Legislativo apostou num prazo bastante dilatado de vacância da norma: doze meses.

Embora a preocupação com a temática já estivesse solidificada mundo afora, no Brasil, o principal desafio ainda seria a conscientização sobre sua importância para a economia e para a sociedade. Bem por isso, em julho de 2019, o Congresso aprovou a prorrogação do início da vigência da LGPD por mais doze meses, na mesma oportunidade em que criou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Isso posto, parece claro que um novo adiamento provocará consequências trágicas, ampliando os riscos de o Brasil ser preterido pelos investidores estrangeiros, pelo critério objetivo de seu desalinhamento em relação às melhores práticas internacionais no tocante ao tratamento de dados.

A pandemia fez ainda crescer absurdamente o volume de dados compartilhados virtualmente, criando-se ambiente propício para a disseminação de condutas impróprias.

Nessa toada, empresas de telefonia móvel, por exemplo, já foram recrutadas por governos locais e estrangeiros, na busca pela valiosa geolocalização dos usuários de aparelhos celulares, sob o pretexto de se aperfeiçoar o monitoramento do isolamento social.

Assim, a vigência plena da LGPD serviria de anteparo resistente ao promíscuo relacionamento de entidades públicas e privadas com os dados dos cidadãos.

No recente julgamento da MP 954/20 – utilizada para compelir as empresas de telecomunicação a compartilharem os dados de seus clientes com o IBGE -, os ministros do STF determinaram sua suspensão, sob a máxima de que o acesso irrestrito de um ente do Estado às informações de todos os consumidores extrapolaria, em muito, os limites fixados pela LGPD — independentemente do início formal de sua vigência.

A transição ideal para o novo paradigma consiste em se respeitar o conteúdo principiológico da LGPD já a partir deste ano, ainda que as sanções administrativas estejam suspensas. Além disso, em reforço à comunicação interna e externa do propósito educativo da norma, a constituição imediata da ANPD torna-se mandatória — valendo lembrar, nesse particular, que os dispositivos da LGPD relacionados à referida Autoridade não estão suspensos.

Embora já exista no papel, a materialização da ANPD carece da nomeação de seus conselheiros. Assim, se for imediatamente constituída, a Autoridade poderá contribuir, desde já, na interpretação de questões próprias da pandemia, tais como os formatos possíveis de manipulação de dados de geolocalização de celulares, a utilização de informações específicas para pesquisa pública etc. A ANPD deverá, ainda, promover políticas de conscientização sobre os direitos e deveres estabelecidos pela norma e estimular a adoção de ferramentas que facilitem o exercício de controle dos titulares sobre seus dados.

Daí a razão pela qual a LGPD deve ser utilizada de imediato como ferramenta indispensável ao enfrentamento da crise sanitária, ao estímulo do crescimento econômico e, em última análise, ao amadurecimento da democracia.

*Marina Dias, advogada associada no escritório Damiani Sociedade de Advogados, é Master of Laws em Direito Societário e pós-graduada em Compliance e em Direito Penal Econômico e Europeu

 

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