Opinião

O tortuoso caminho até o impeachment em Santa Catarina

Falta justa causa para o exercício da ação penal contra governador

4 de maio de 2021

Por Adib Abdouni

Artigo publicado originalmente na ConJur

O processo de afastamento do governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), por suposto envolvimento na compra de respiradores pulmonares — com dispensa de licitação e entrega parcial de aparelhos com defeito — para o combate da pandemia da Covid-19 no estado, chama a atenção por suas peculiaridades fáticas e nos convida a uma reflexão maior. Ousa-se dizer que o prosseguimento do processo de impeachment parece ganhar contornos unicamente de perseguição política.

Muito embora o crime de responsabilidade gravite unicamente no campo da responsabilização político-administrativa, não se mostra juridicamente tolerável condenar-se alguém por crime de responsabilidade se todas as instâncias da Justiça, da Polícia Judiciária e do Ministério Público (estadual e federal) disseram não haver comprovação de autoria de ação ou omissão pelo gestor público no processo — tido como espúrio — de compra dos respiradores pulmonares.

Vale dizer, o impeachment de um agente político — enquanto instrumento vigoroso de fiscalização do Poder Legislativo — é inerente ao regime republicano e faz parte do jogo democrático. Ou seja, o agente político está sujeito às consequências jurídicas de seu comportamento, no caso de cometimento de crime de responsabilidade, cuja constatação representa circunstância indispensável à validade constitucional de sua destituição.

Assim, para a deflagração desse procedimento em desfavor daquele que foi legitimamente eleito pelo povo, é preciso que os fatos sejam graves, e, principalmente, demonstrados, dada sua natureza excepcional que acaba por infirmar o fundamento de que todo o poder emana do povo que o exerce por meio de seus representantes eleitos, o que não autoriza — por essa mesma razão — o arbítrio, o abuso de poder e, sobretudo, a corrupção, que via de regra deságua em crime de responsabilidade.

Nessa senda, importa destacar que crimes de responsabilidade diferem dos atos delituosos tratados pelo Direito Penal, por referirem-se a irregularidades políticas e administrativas cometidas no exercício do cargo e estão definidos na Lei 1079/50, cujo conteúdo normativo foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 no que define os crimes capitulados e no que estatui regras de processamento e julgamento não conflitantes com o atual desenho constitucional do processo de impedimento do chefe do Executivo.

Sendo o governador julgado pela forma determinada na Constituição do Estado, um tribunal misto restou instalado, composto por deputados estaduais e desembargadores, cuja decisão — acaso condenatória — não poderá ser outra senão a perda do cargo, com inabilitação até cinco anos para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da Justiça comum.

Pois bem.

Em relação à gravidade dos fatos, não restam dúvidas acerca de sua ocorrência, haja vista que se cuidam de supostos atos ilegítimos praticados no momento de uma das maiores crises sanitárias mundiais. Isso exigiria que o governador adotasse o implemento austero de uma gestão de recursos públicos emergenciais com a finalidade de conter o avanço dos efeitos nefastos da pandemia sobre a sociedade, especialmente sob o enfoque da saúde, ante o risco concreto e iminente da causação do efeito mais abominável da moléstia, qual seja, a perda da vida.

Contudo, no que se refere ao âmbito da demonstração dos fatos contrários a lei que lhes são imputados, parece falecer justa causa, o que é revelado pelo cenário do desfecho das investigações havidas no âmbito da polícia judiciária, do Ministério Público e do Poder Judiciário, mesmo que o crime de responsabilidade, como se viu, refira-se a um delito de ordem político-administrativa e não comum.

Com efeito, conforme documentos divulgados, a Polícia Federal, já em outubro de 2020, havia manifestado que os elementos colhidos no curso da investigação não permitiram concluir pelo envolvimento do governador na operacionalização do procedimento ilícito em foco, ou seja, retratou-se, a inexistência de indícios da prática de delito penal.

O Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, de sua parte, em dezembro do ano passado, manifestou que, após análise técnica efetuada no âmbito daquela Corte, não se identificou — acerca dos fatos apurados — qualquer responsabilidade do governador.

Em igual medida, o Ministério Público Estadual, em janeiro deste ano, informou a ausência de ato de improbidade por parte do chefe do Executivo do estado a justificar a propositura de ação de improbidade administrativa, bem como a adoção de qualquer outra medida de cunho investigativo, com a consequente determinação de arquivamento do inquérito civil sobre a compra do aludidos respiradores.

Conclusão essa seguida pelo Ministério Público Federal (13/4/2021) ao dizer — segundo a contextualização fática e o avanço das investigações — que a apuração da flexibilização dos controles da atividade administrativa em razão da pandemia (com o fito de permitir o desvio de recursos públicos nos interesses espúrios de particulares), não resultou em qualquer indicativo concreto de que o governador tivesse conhecimento ou participação no pagamento antecipado de valores, sem a exigência de garantia ou com a prática de outras irregularidades, a denotar a necessidade de promoção de arquivamento do inquérito.

Por idênticas razões, vale dizer, falta justa causa para o exercício da ação penal; o Superior Tribunal de Justiça, em 14 de abril, determinou o arquivamento do inquérito contra o governador do Estado de Santa Catarina.

Enfim, se não houve a constatação de fato para a imputação de crime contra o governador (busca da verdade real), os mesmo fatos submetidos ao crivo do Tribunal Especial não se apresentam como fundamentos idôneos a fim de justificar a ocorrência do crime de responsabilidade, haja vista que, embora inserido no trato político de controle da conduta do mandatário do Executivo estadual, não significa dizer que seu julgamento dispense um mínimo de juridicidade (valorização das regras gerais de direito sobre a mera aplicação da lei político-administrativa), sob pena de desvirtuamento do próprio sistema de freios e contrapesos de convivência harmônica entre os poderes, a descambar para o arbítrio e para o autoritarismo ditatorial típicos do regime de exceção.

Adib Abdouni é advogado criminalista e constitucionalista.

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