Opinião

O fetiche da prisão em 2ª instância

Quem acredita em saídas rápidas está, ao fim e ao cabo, comprando uma grande ilusão

26 de janeiro de 2022

Por Lenio Luiz Streck*

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

O tema da presunção da inocência é cativante. Depois da longa luta travada no Supremo Tribunal Federal com as ADCs (ações declaratórias de constitucionalidade) 43, 44 e 54, há movimentos no Parlamento para dar o drible na decisão.

Um dos “encantos” é pela alteração dos artigos 102 e 105 da Constituição, fazendo com que os recursos extraordinário e especial deixem de ser recursos e se tornem ações revisionais. Processos terminariam no segundo grau. A ver.

Há muitas lendas urbanas sobre a presunção da inocência. Uma delas é a de que gera impunidade. Bom, num país com mais de 700 mil presos, como falar em impunidade? Chegou-se a dizer que, com a decisão do Supremo, 160 mil assassinos e estupradores seriam soltos. Mentira.

Como o Brasil tinha 709.205 presos em 2019, ano do julgamento das ações no STF, apenas 0,7% estava apto a receber o benefício de recorrer em liberdade, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Menos de 5.000 encarcerados. Veja-se o tamanho da falácia.

À época dizia-se que “o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu era irrisório, inferior a 1,5%”. Ora, se o número é irrisório, o 0,7% dos presos que puderam se beneficiar com a mudança jurisprudencial sequer seriam metade desse número já irrisório.

Dados da Defensoria Pública, mostrados no julgamento, apontam que, em um universo de 6.500 acórdãos de tribunais de Justiça, 55,4% tiveram alguma modificação pelo Superior Tribunal de Justiça. Isso é pouco?

Outra lenda diz que, com a vitória das ADCs no STF, as pessoas já não seriam presas. Ora, pessoas continuam sendo presas após condenação em segundo grau. O erro está em pensar que basta recorrer aos tribunais superiores para ficar em liberdade. Claro que não é assim. Quem é da área jurídica sabe bem como é isso. Fácil não é responder em liberdade; fácil é ficar preso. Basta ver o número de encarcerados.

Vamos dar o nome que as coisas têm. O que querem, na verdade, é simples: prisão automática. Todavia, mal sabem como é ser julgado em primeiro grau e depois em segundo em um país como o Brasil.

É muito fácil ser condenado sem provas, com nulidades, provas ilícitas etc. Por exemplo, quem não sabe da discussão sobre como alguns tribunais, como o de São Paulo, que teimam em desobedecer a jurisprudência do Supremo? A verdade é que mal se cumprem os enunciados de súmula favoráveis à liberdade dos réus fixados pelos tribunais superiores. As cortes estaduais resistem.

Se alguns tribunais estaduais já corriqueiramente desrespeitam a uniformização jurisprudencial exigida por lei, como garantir o devido processo aos réus com o trânsito em julgado finalizado no segundo grau nesse contexto? O que fazer com esses condenados contra a lei?

Defensores da prisão após condenação em segunda instância dizem: na Alemanha, na França e nos EUA não é assim. Ok. Só que, aqui, não há colegiado na primeira instância. Isso para começar a discussão. Não se pode misturar ovos com caixa de ovos.

A presunção de inocência é cláusula pétrea e trincheira contra as fragilidades do nosso sistema em que um juiz, há pouco, orgulha-se nas redes em dizer que segue só o que ele pensa e que 99% da doutrina é lixo.

Como podemos ver, ainda há muito o que ser dito sobre a importância da presunção de inocência. Sem ser textualista, temos de concordar que existem limites interpretativos.

Enquanto isso, dois problemas muito maiores são deixados de lado: o descontrole do sistema prisional —não esqueçamos que o próprio STF declarou o sistema carcerário brasileiro como um “estado de coisas inconstitucional”— e a relativização da Constituição.

Quem acredita em saídas rápidas está, ao fim e ao cabo, comprando uma grande ilusão.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor e advogado

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