Opinião

O benefício processual trabalhista aplicável na sucessão

Interpretação da legislação deve ser teleológica e não literal

29 de janeiro de 2021

Por Olga Vishnevsky Fortes

Artigo publicado originalmente no Jota

Há interpretações consagradas que pouco são questionadas atualmente.[1] Costumamos receber do Ministério Público do Trabalho sua manifestação, em processos em que é postulante o herdeiro menor do espólio, no sentido de que, nos termos da Lei 6858/80, quem deve receber as verbas contratuais do empregado falecido é seu dependente perante o INSS e ponto.

Pouco ou nada tem importado para nós juízes, membros do Ministério Público e advogados, que outros herdeiros, esses não dependentes do falecido empregado, nada recebam, desde que o dependente o faça.

Nesse sentido, a Lei 6858/80 parece clara quando diz que: “Art. 1º  Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-Pasep, não recebidos, em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento.”

A interpretação meramente literal, de aparente clareza, esconde, porém, a verdadeira intenção do legislador.

O documentário “O Capital no século XXI”[2] explica que um dos pilares do capitalismo é o direito de herança, daí o repúdio ao instituto por Marx e Engels, segundo também assenta o artigo de Paulo André Carrad[3]. O interessante documentário propõe a tributação das grandes fortunas, notadamente quando passadas por herança, de forma a se evitar o implemento da desigualdade aos patamares do século XVIII.

Mais importante que econômica e historicamente, o direito de herança é, então, um dos pilares definidores do sistema capitalista, princípio econômico de um país. Segundo José Afonso da Silva, “a Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar, quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar, significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado ...”[4].

Ante o nosso sistema econômico, o direito à herança é qualificado como direito fundamental. Daí a previsão expressa contida no art. 5º, XXX, da Constituição Federal.

A lei que regula a sucessão é, em primeiro plano, a civil. A verdade de tal assertiva está no princípio da “saisine”, que reconhece a transmissão desde a abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte do sucedido.

Paulo André Carrad explica que “o aparecimento do princípio da saisine, definidor da transmissão pronta da propriedade e da posse do espólio aos herdeiros, por ficção jurídica e abstrata, no exato momento da morte do autor da herança, parece bem vinculado ao surgimento também de ideias iluministas e limitadoras de abusos estatais. Atualmente, o princípio é adotado na quase totalidade dos ordenamentos jurídicos nacionais, estando explicitamente positivado no Brasil no CC 1.784[5]”.

Mas como interpretar os dizeres do art. 1º da Lei 6858/80, que parece excluir o direito às verbas contratuais do empregado falecido dos sucessores não declarados dependentes perante o INSS? A pergunta tem sua resposta imediata na própria Lei 6858/80, que na exposição de motivos explica seu fim.

Diz a exposição de motivos: “Excelentíssimo senhor presidente da República: Entre os objetivos do Programa Nacional de Desburocratização, instituído pelo decreto n° 83.740, de 18 de julho de 1979, está o de liberar as pessoas de modestos recursos dos gastos e exigências a que ficam obrigadas para o exercício de direitos que a lei já lhes reconhecem mas faz depender de formalidades que provocam demora e despesas, estas, não raro, maiores do que os valores a receber, tornando inviável a habitação dos interessados. 2. Em tal situação se enquadram os dependentes ou sucessores de empregados ou contribuintes que deixaram de receber, em vida, créditos salariais ou assemelhados, ou a devolução de Imposto de Renda e outros tributos, ou ainda, saldos bancários, de cadernetas de poupança e de fundos de investimento. 3. Em todos esses casos se faz necessário, atualmente, ajuizar inventário ou arrolamento, dispendioso e demorado. 4. Visando a eliminar tais inconvenientes em atenção a solicitações e sugestões que tenho recebido, fiz elaborar o anteprojeto de lei em anexo… O anteprojeto tem em mira estender tal sistemática aos valores nele referidos, ensejando aos dependentes ou sucessores dos titulares o recebimento sem os ônus do inventário ou arrolamento.[6]

De se notar que o legislador pretendeu facilitar o acesso aos direitos já reconhecidos em lei. Não há, na lei especial, nenhuma pretensão de revogar direitos sucessórios, mas desburocratizar seu alcance em determinadas situações. É, pois, a interpretação teleológica que deve prevalecer sobre a interpretação literal do constante do artigo 1º da Lei 6858/80.

O que a Lei 6858/80 fez, essa agora lida em conjunto com a Lei 8036/90, Lei 8213/91 e IN 77/2015, foi apenas criar uma presunção de necessidade premente do dependente, e de anuência dos demais herdeiros, de forma a permitir que o dependente receba o FGTS, PIS, benefício[7], e resíduo previdenciário[8], quando não houver processo judicial em curso (trabalhista ou de inventário).

Se houver processo judicial trabalhista em curso, a presunção poderá ou não se mostrar presente. As verbas deferidas no processo trabalhista serão recebidas pelo dependente, notadamente se único menor[9] ou se único necessitado, com a anuência dos demais, ou todos os herdeiros receberão suas cotas, por alvarás, independentemente de inventário, na forma da lei civil.

Se houver questões como arguição de ilegitimidade[10], ou titularidade do benefício, somente o Juízo das Sucessões poderá dirimi-las, o que poderá ocorrer após a quitação ou execução das verbas devidas ao espólio.

Se houver acordo em que a representante legal do menor ou menores dependentes manifeste expressa concordância, poderá haver divisão igualitária da verba trabalhista acordada, sendo que “as quotas atribuídas a menores ficarão depositadas em caderneta de poupança, rendendo juros e correção monetária, e só serão disponíveis após o menor completar 18 (dezoito) anos, salvo autorização do juiz para aquisição de imóvel destinado à residência do menor e de sua família ou para dispêndio necessário à subsistência e educação do menor”[11].

Ou isso, ou haveria negativa de vigência do art. 5º, XXX, da Constituição Federal, com a exclusão da legítima, sem culpa do herdeiro excluído[12], como ocorre, não raro, quando o falecido empregado possui duas famílias, considerando como dependente o filho menor de uma delas, em detrimento de outro menor, não “contemplado” com as benesses da declaração de dependência.

E mais. A presunção criada em benefício do dependente tem o escopo de preservação de seu sustento e da saúde financeira da família[13]. Uma verba advinda da condenação do empregador numa indenização por danos morais, por exemplo, estaria além do escopo legal, a permitir, mais uma vez, a divisão da verba na forma da lei civil.

A interpretação deve ser, pois, teleológica e não literal, não podendo ser tida como excludente do regime sucessório descrito pelo princípio da “saisine”, pelo artigo 1784 do Código Civil[14], e pelos Art. 5º, XXX, e 170 da Constituição Federal. Não há direito das sucessões trabalhista, mas uma espécie de benefício processual trabalhista[15] aplicável na sucessão.

 

[1] Vide v. acórdão em que se decidiu que somente os dependentes perante a Previdência teriam direito a receber os créditos do empregado falecido na execução trabalhista: TST, AIRR – 3259400-96.1997.5.09.0014, 8ª Turma, relatora: Dora Maria da Costa, julgamento: 26/10/2016, publicação: 28/10/2016.

[2] Inspirado no livro de Thomas Piketty e dirigido por Justim Pemberton.

[3] Artigo “Anotações sobre sucessão patrimonial por morte. Origens, curiosidades históricas e observações. Um retrospecto sem exata cronologia do Direito das Sucessões” publicado na revista Dpergs, in: <https://www.revistadpergs.org.br/indice/17-edicao-08/139-anotacoes-sobre-sucessao-patrimonial-por-morte-origens-curiosidades-historicas-e-observacoes-um-retrospecto-sem-exata-cronologia-do-direito-das-sucessoes.html>. Acesso em15 de janeiro de 2021).

[4] In Curso de Direito Constitucional Positivo”, Ed. Malheiros 36ª ed, São Paulo, p. 794.

[5] Op. Cit. P. 1.

[6] Diário do Congresso Nacional – Seção 1 – 7/8/1980, Página 7033; grifou-se (Exposição de Motivos)

[7] Segundo a Lei 8213/91, o dependente terá direito à pensão por morte, auxílio-reclusão, serviço social, reabilitação profissional.

[8] O benefício do resíduo pago ao dependente depende de anuência dos demais herdeiros, como dispõe o Art. 521 da IN 77/2015.

[9] E aqui a menoridade será de 21 anos, segundo a legislação previdenciária.

[10] Que, não raro, ocorre quanto à condição de companheira do falecido.

[11] Segundo o parágrafo primeiro da Lei 6858/80.

[12] A exclusão da legítima ocorre nas hipóteses dos art. 1814, 1962 e 1963 do Código Civil, sempre em casos de dolo ou culpa do herdeiro excluído.

[13] A companheira ou esposa é dependente pelo laço familiar.

[14] Artigo 1572 do Código Civil de 1916, excluída a posse da “saisine” na nova redação.

[15] De premente necessidade do dependente e da anuência dos demais herdeiros.

Foto: Divulgação

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