Opinião

Mínimo existencial: na prática, a teoria é outra

É necessário que conceito seja regulamentado

7 de dezembro de 2021

Por Francisco Antonio Fragata Jr.*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O que é o exercício da liberdade no dia a dia? “Uma calça velha azul e desbotada?” Poder falar e fazer o que quero e inventar mentiras a respeito de quem não gosto? Dirigir um veículo sem que o Estado fale que eu sei fazê-lo?

A calça pode. O resto não.

Os limites da liberdade são aqueles que o Estado definir. Isso porque seus conceitos são subjetivos e variam em função de costumes culturais. Em certos países, menores com oito anos de idade podem ser privados da liberdade se cometerem crimes. E “adultos” de 16 anos estão habilitados para dirigir veículos. Nem por isso a Inglaterra e os Estados Unidos são considerados menos ou mais “livres” do que o Brasil.

Há limites que também não podem ser restringidos, estabelecidos em cartas internacionais, que as nações se obrigaram a cumprir, como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, ou mesmo nas normas constitucionais de um país, como o nosso.

Não é muito diferente com o mínimo existencial. O que é e quais os seus limites? São questões das mais importantes que passaram a se perguntar neste ano juízes e advogados com atuação no Direito das Relações de Consumo, a partir da publicação, em 1º de julho, da chamada Lei do Superendividamento.

Para os fins do tratamento do superendividamento, tema normatizado em meados deste ano pela Lei 14.181/2021, será necessário regulamentar esse “novo” conceito.

Tal exigência é imperativa: nas cinco vezes em que o termo superendividamento foi mencionado na lei, veio sempre acompanhado da expressão “nos termos da regulamentação”.

Ou seja: o legislador condicionou sua existência à regulamentação específica. Não é uma norma autoaplicável.

É chegada a hora de regulamentá-la, sob pena da lei não poder ser aplicada na sua maior parte.

O Ministério de Justiça, através da Senacon, passou a colher sugestões para a regulamentação e, de plano, duas correntes surgiram: a que defende que a norma regulamentadora deve ser aberta, elencando os princípios a serem adotados pelos que a aplicarem (inclusive, e em última e apropriada instância, o Poder Judiciário); e a utilitarista, que pretende que se crie uma fórmula aplicável a todos os casos. Todos os argumentos são respeitáveis.

Antes de mais nada é preciso entender um pouco melhor o que é o mínimo existencial.

Tem se buscado distinguir o mínimo existencial de um outro conceito, o mínimo vital. Ao menos para os fins desta lei. O que parece ser correto.

Em 2016, Daniel Sarmento trouxe, em matéria publicada na Revista de Direito da Cidade, volume 8/4, sob o título “O Mínimo Existencial”, interessante discussão sobre o tema.

Mas a ótica, então, era de que o mínimo existencial e o mínimo vital seriam sinônimos.

O mínimo vital, como bem mencionou o articulista, citando Pontes de Miranda, em obra de 1933, assim o definiu:

“Como direito público subjetivo, a subsistência realiza, no terreno da alimentação, das vestes e da habitação, o standard of living segundo três números, variáveis para maior indefinidamente e para menor até o limite, limite que é dado, respectivamente, pelo indispensável à vida quanto à nutrição, ao resguardo do corpo e à instalação.
É o mínimo vital absoluto. Sempre, porém, que nos referirmos ao mínimo vital, deve-se entender o mínimo vital relativo, aquele que, atentando-se às circunstâncias de lugar e de tempo, se fixou para cada zona em determinado período (…). O mínimo vital relativo tem de ser igual ou maior que o absoluto.
O direito à subsistência torna sem razão de ser a caridade, a esmola, a humilhação do homem ante o homem. (…) Não se peça a outrem, porque falte; exija-se do Estado, porque êste deve. Em vez da súplica, o direito” (Pontes de Miranda, 1933, p. 28-30).

Tal conceito, em última análise, é o que serve para a criação do salário mínimo, por exemplo.

E mesmo para alicerçar teses de que é dever do Estado fornecer tal contraprestação a todo o cidadão brasileiro.

Com a chegada da Lei 14.181, contudo, esse sentido se alterou.

O mínimo existencial vem a ser algo diferente: o legislador não pretendeu proteger apenas o superendividado de baixo poder aquisitivo, mas, sim, todos os que chegaram a essa situação por força de endividamento peculiar em relação de consumo. O mínimo vital, nesse caso, não serve como referência.

E não tem muito sentido, com o devido respeito aos que pensam o contrário, arrastar à condição de subsistência do mínimo vital o indivíduo de classe média, casado e que possui filhos em escola, por exemplo. O valor seria insuficiente para que sua mantença se estabelecesse num nível digno de seu modo de vida, arrastando-o — e todos que o rodeiam — a uma situação de penúria além do socialmente desejado.

Não que o devedor deva ser premiado pelo inadimplemento. Sofrerá, sim, na carne a maior parte das consequências do endividamento. Mas não se poderá arrasar suas perspectivas de uma vida digna enquanto paga o que deve.

Mas isso também deveria valer para outras situações de inadimplemento, como o fiscal, de condomínio etc. Como é possível alguém perder o imóvel de moradia, duramente conquistado, por dívida de IPTU?

Assim, o mínimo existencial tem um conceito um pouco mais amplo do que o mínimo vital, que poderá, inclusive, ser mencionado nos preâmbulos da regulamentação.

A criação de uma norma aberta é tentadora. Afinal, como definir um mínimo existencial com amarras se, a cada caso, o elemento subjetivo estará presente?

Porém, do mesmo modo que já foi dito acima para o exercício da liberdade, se isso não for feito, ficaremos sujeitos a uma infinidade de considerações subjetivas, o que inevitavelmente aumentará o custo das operações de crédito e, também, os das negociações para viabilizar os pagamentos. E, ainda assim, nada impedirá o aumento da judicialização.

Não se pode desconsiderar também que estamos falando de crédito de massa, cujas políticas são standards. É graças a isso que esse crédito pode baratear e atingir mais consumidores.

A conclusão possível é que a regra geral deverá estabelecer parâmetros, mesmo enfrentando as dificuldades que essa missão impõe.

Por exemplo: o uso de internet compõe o mínimo existencial? Difícil responder, em face das facilidades cada vez maiores de utilização de redes públicas. Condomínio? Tributos? Como a dívida tributária leva à perda de bens relevantes para a manutenção do mínimo existencial, parece mais relevante repensar a execução dessas dívidas a incluí-las na definição do mínimo, pois o que se está pedindo é que a iniciativa privada se sacrifique em prol de dívidas dos consumidores face ao Estado.

Não será fácil estabelecer parâmetros objetivos. Mas eles são necessários para impedir infinitas discussões sobre o tema, com a distribuição de inúmeras ações.

E como as entidades que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor poderão atuar — e autuar — se a mensuração desses conceitos é subjetiva?

Assim pensando, parece inevitável que sejam estabelecidos critérios objetivos para a melhor aferição do mínimo existencial. Critérios, inclusive, que poderão — e deverão — ser utilizados pelas instituições fornecedoras de crédito, na análise da sua concessão.

E, quando não houver motivo razoável que levou ao superendividamento, quer usando como referência a situação anterior, quer por razão não relacionada com imprevistos aceitáveis (como uma doença devastadora das finanças da família), não há motivos para se aplicar uma política que se destina aos que contraíram dívidas cujo pagamento seria possível.

Também deverá ser levada em conta a questão do empréstimo de emergência e que traz alto risco para o financiador. Necessário em muitas ocasiões, tem maior possibilidade de se tornar impagável mais à frente. Se o legislador colocar barreiras insuperáveis para o seu recebimento, inviabilizará tais empréstimos. Se cobrado com um spread maior do que o usual, é risco do credor. Caso contrário, é risco do devedor e deverá ser levado em conta na hora da renegociação.

Como se vê, é uma tarefa difícil, mas que deve ser enfrentada tendo em vista os inúmeros entraves que poderão surgir no dia a dia, sem nos esquecermos de que a lei objetivou proteger quem se colocou em situação tão precária que a cobrança poderá arruiná-lo, talvez para sempre.

Francisco Antonio Fragata Jr. é especialista em Direito das Relações de Consumo e presidente do Conselho de Administração do Fragata e Antunes Advogados.

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