Opinião

Entenda o visto humanitário para ucranianos

Instrumento é um importante gesto de solidariedade internacional

25 de abril de 2022

Por Michele Alessandra Hastreiter*

A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro, já levou mais de 4 milhões de ucranianos a deixarem seu país em busca de um lugar seguro. Trata-se da crise de refugiados que mais rapidamente cresceu na Europa, desde a Segunda Guerra Mundial, despertando comoção e solidariedade ao redor do mundo. Diante deste cenário, o Governo Federal brasileiro publicou, em 3 de março, a Portaria Interministerial n° 28 MJSP/MRE, dispondo sobre a concessão de visto temporário e autorização de residência para fins de acolhida humanitária aos nacionais ucranianos afetados pelo conflito armado.

Os vistos humanitários passaram a fazer parte da política migratória nacional em decorrência do trágico terremoto de 7 graus na escala Richter que, em 2010, vitimou a população haitiana, ensejando o deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas. Na época, o Brasil, que já liderava a missão de estabilização das Nações Unidas para pacificar um Haiti à beira de uma guerra civil, foi pioneiro ao abrir suas portas a imigrantes haitianos, sendo criada, 2 anos mais tarde, a base legal para a concessão de um visto que lhes permitia ingressar no Brasil e aqui residir por até cinco anos. A iniciativa partiu do Poder Executivo, que, pela Resolução Normativa n° 97/2012 do Conselho Nacional de Imigração, disciplinou pela primeira vez a concessão de um visto humanitário, ainda não previsto no então vigente Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980).

Em 2017, com a aprovação da nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017), em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, os vistos temporários para acolhida humanitária ingressaram formalmente no rol de vistos concedidos por consulados brasileiros no exterior, nos termos de seu artigo 14, parágrafo 3º:

O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento.

A nova lei estabeleceu ainda que a acolhida humanitária deve ser um dos princípios da política migratória nacional, a qual também deve pautar-se pela promoção da entrada regular e da regularização documental de imigrantes em território brasileiro. Desde então, sírios, afegãos e haitianos puderam e, agora, ucranianos podem beneficiar-se do instituto do visto humanitário, que permite que os imigrantes que deixam seus países em situações extremas possam deslocar-se de forma segura e ingressar no Brasil, onde posteriormente podem solicitar refúgio ou autorização de residência e reconstruir suas vidas, temporária ou definitivamente.

Em 18 de março, um primeiro grupo de imigrantes ucranianos chegou ao Brasil, encontrando amparo em entidades religiosas localizadas, sobretudo, no Paraná. Desde então, outros grupos têm paulatinamente ingressado no território nacional com o visto humanitário.

Para solicitar o visto humanitário, os ucranianos devem preencher um formulário online e dirigirem-se a um consulado brasileiro no exterior, munidos de passaporte, cópia de passagem aérea para o Brasil e certificado de antecedentes criminais expedido pela Ucrânia. Caso não seja possível obter o certificado de antecedentes criminais, em razão do conflito armado, os consulados podem aceitar que o documento seja substituído por uma declaração do imigrante, sob as penas da lei, da ausência de antecedentes criminais em qualquer país. De forma excepcional e devidamente motivada, a Secretaria de Estado das Relações Exteriores pode também autorizar a expedição do visto mesmo na ausência de um documento de viagem válido, tendo em vista a reconhecida dificuldade para expedição de documentos no atual contexto ucraniano.

Uma vez expedido por um consulado brasileiro no exterior, o visto permite o ingresso do ucraniano em território nacional, no prazo de até 180 dias. Após o ingresso, o imigrante precisa apresentar-se, em até 90 dias, a uma unidade competente da Polícia Federal, para a obtenção da Carteira de Registro Nacional Migratório – o documento de identidade expedido pelo Brasil para imigrantes. Este documento, expedido com a validade inicial de dois anos, confirma a residência legal do imigrante e permite o exercício de direitos civis, inclusive o de trabalhar no Brasil. Ao final do período, é possível prorrogar a autorização de residência por prazo indeterminado, desde que o imigrante possa provar que não se ausentou do Brasil por período superior a 90 dias a cada ano, que entrou e (sendo o caso) saiu do Brasil passando sempre por controles fronteiriços, que segue sem antecedentes criminais e que possui meios de subsistência.

Quanto aos ucranianos que já tenham ingressado no território brasileiro, a autorização de residência pode ser obtida diretamente na Polícia Federal, bastando para tanto a apresentação de passaporte (ainda que com a data de validade expirada), certidão de nascimento ou casamento (caso o passaporte não contenha os dados de filiação do imigrante) e uma declaração da ausência de antecedentes criminais no Brasil e no exterior.  Neste caso de obtenção da autorização de residência, o imigrante deverá renunciar a eventual solicitação de reconhecimento da condição de refugiado.

Tendo em mente a necessidade de facilitar ao máximo a concessão do visto e da autorização de residência para as pessoas vitimadas pelo conflito armado, a Portaria n° 28 expressamente dispensa a legalização e a tradução dos documentos ucranianos, exigência que geralmente é feita para o reconhecimento local de documentos estrangeiros. O tratamento excepcional justifica-se pela gravidade da situação na Ucrânia.

A concessão dos vistos humanitários para ucranianos mostra que o Brasil está de portas abertas para as vítimas do conflito na Ucrânia. Trata-se de um importante gesto de solidariedade internacional, que deve vir acompanhado de um compromisso das autoridades imigratórias em atentarem ao espírito da Lei de Migração na aplicação da Portaria n° 28, evitando restrições burocráticas que possam comprometer a efetividade da iniciativa.

*Michele Alessandra Hastreiter é advogada em Direito Migratório na Andersen Ballão Advocacia.

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