Opinião

Artigo 116, parágrafo único, do CTN é inconstitucional

STF deve aprofundar análise do dispositivo para que dúvidas sejam sanadas

19 de junho de 2020

Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

Por Hamilton Dias de Souza e Hugo Funaro

Artigo publicado originalmente na ConJur

O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento virtual da ADI 2.446, na qual se discute a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

A relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, empreendeu uma interpretação sistemática do CTN, à luz do princípio da legalidade/tipicidade tributária, para concluir que “a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”. Acrescentou que continua hígido o artigo 110 do CTN (que assegura a observância das formas de direito privado pela legislação tributária) e não está “autorizado o agente fiscal a valer-se de analogia para definir fato gerador e, tornando-se legislador, aplicar tributo sem previsão legal”, nem a socorrer-se “de interpretação econômica”. Entretanto, julgou improcedente a ação, por entender que “a despeito dos alegados motivos que resultaram na inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN, a denominação ‘norma antielisão’ é de ser tida como inapropriada, cuidando o dispositivo de questão de norma de combate à evasão fiscal”.

É irretocável o voto proferido pela relatora ao reconhecer o direito de auto-organização dos contribuintes para evitar (ou reduzir, diferir) o pagamento de tributo antes do fato gerador (elisão fiscal) e a impossibilidade de o Fisco aplicar tributação mais gravosa, mediante o uso de analogia ou interpretação econômica.

Todavia, a conclusão de que a norma do parágrafo único do artigo 116 do CTN seria válida porque se limitaria ao combate de práticas ilícitas verificadas após a ocorrência do fato gerador (evasão fiscal) contraria não só o espírito [1] como a letra do referido dispositivo, que indicam claramente ter sido permitido ao Fisco desconsiderar os efeitos jurídicos de atos e negócios jurídicos praticados antes do fato gerador (elisão fiscal), a fim de submetê-los a regime tributário diverso do que lhes seria normalmente aplicável.

Afinal, se de evasão se tratasse, não haveria necessidade de qualquer outro procedimento além daqueles já previstos na legislação tributária, para que o lançamento fosse efetuado ou revisto pela autoridade fiscal, em vista da realidade dos fatos, como se verifica nos casos de dolo, fraude ou simulação, que são figuras amplamente conhecidas e tipificadas há décadas, tanto pelo CTN (artigos 149, VII, 150, §4º, 154, parágrafo único, 155, I e 180, I), quanto pela legislação penal (Lei nº 8.137/1990, artigos 1º e 2º). Nesses casos, a autoridade administrativa deverá, sob pena de responsabilidade funcional (CTN, artigo 142), rever o lançamento sempre que constate que o ato ou negócio jurídico declarado pelo contribuinte não se verificou de fato, como se dá na simulação relativa (CTN, artigo 149, VII). Já nos casos do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, admite-se que o ato ou negócio jurídico seja exatamente aquele declarado pelo contribuinte, autorizando-se, todavia, a desconsideração de seus efeitos, se e quando as circunstâncias revelarem alguma “anormalidade” na sua prática.

Vale dizer, enquanto o artigo 149 do Código Tributário Nacional determina a correta qualificação do fato ocorrido no mundo fenomênico, falseada mediante dolo, fraude ou simulação, o parágrafo único do artigo 116 autoriza a alteração dos efeitos do fato corretamente qualificado, quando atos ou negócios jurídicos sejam utilizados como meio para elidir o tributo que o Fisco considere devido, em razão de normas aplicáveis a situações equivalentes, o que supõe aplicar ao fato A normas previstas para o fato B, em função de critérios pré-estabelecidos que permitam aproximar as situações. Assim, não há de cogitar-se de “evasão” nos casos de “desconsideração”, senão quando adotado ardil para não pagar tributo decorrente da requalificação da operação.

É por essa razão que foi outorgada competência à lei ordinária (emanada por cada um dos entes tributantes interessados) para estabelecer os “procedimentos” necessários para que a autoridade fiscal possa “desconsiderar” (desprezar) os regulares efeitos dos atos e negócios praticados pelos contribuintes, exclusivamente para fins tributários. Além de assegurar o devido processo legal formal, a função da lei ordinária seria indicar os critérios (jurídicos/ econômicos) a serem observados pela autoridade administrativa para identificar “planejamentos fiscais abusivos” e, assim, desconsiderar seus efeitos tributários, para aplicar aos fatos outro regime tributário, obviamente, mais gravoso.

Essa conclusão se impõe, pois a aceitação da tese de que a Lei Complementar nº 104/2001 tenha objetivado combater a evasão fiscal implicaria admitir a tese (absurda) de que o Fisco estivesse impedido de lavrar autos de infração fundados na prática de atos fraudulentos ou simulados, já que, como bem observado no voto da ministra Cármen Lúcia, “a plena eficácia da norma depende de lei ordinária para estabelecer procedimentos a serem seguidos”, porém, ela “pende, ainda hoje, de regulamentação”.

Aliás, as tentativas frustradas da União de “regulamentar” o parágrafo único do artigo 116 do CTN evidenciam que o dispositivo sempre foi tido e havido como uma “norma geral antielisão”, destinada a desconsiderar os efeitos tributários de planejamentos fiscais tidos por “abusivos”, conforme critérios definidos pelo próprio ente tributante e que variaram no tempo, como se verifica das Medidas Provisórias nºs 66/2002 e 685/2015.

É nesse ponto que reside o principal vício de inconstitucionalidade da norma impugnada na ADI: a falta de densidade normativa. Conforme escrevemos em outra oportunidade [2], ao atribuir competência à lei ordinária para disciplinar os “procedimentos” (critérios materiais e formais) necessários à desconsideração de atos e negócios jurídicos, o parágrafo único do artigo 116 do CTN descumpriu a sua função constitucional de estabelecer normas gerais em matéria de obrigação tributária (CF, artigo 146, III, “b”).

Com efeito, o dispositivo não indica qualquer critério a ser observado pelas autoridades administrativas para a identificação dos atos e negócios passíveis de desconsideração, bem como para sua requalificação tributária, como seria de rigor para uniformizar a legislação tributária e evitar os conflitos de competência que fatalmente surgiriam se a União, os 26 Estados, o Distrito Federal e os quase seis mil municípios pudessem editar leis ordinárias adotando os critérios que bem entendessem para controlar “planejamentos tributários”, com emprego indiscriminado de figuras polissêmicas como fraude à lei, propósito negocial, abuso de formas, abuso de direito etc [3].

Em outras palavras, além das situações “evasivas” contempladas no CTN (dolo, fraude, simulação), a lei complementar teria de indicar em quais hipóteses a autoridade “poderá” ou não “desconsiderar” os atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes e quais as consequências decorrentes, especialmente quando possa resultar alteração da competência tributária de outros entes tributantes.

A falta de critérios claros e uniformes na lei complementar poderia gerar uma “babel tributária”, já que cada ente poderia entender ocorrido o fato gerador de uma certa maneira, a partir dos critérios estabelecidos em sua respectiva legislação, possibilitando a cobrança de tributos diferentes sobre o mesmo fato, com quebra de isonomia e insegurança jurídica. Como exemplo, recorde-se situação que acontecia com frequência no caso de contrato de leasing de veículos, quando havia previsão de cobrança antecipada do valor residual (VRG). O contrato, embora típico e válido perante o Direito privado, era desconsiderado pela Receita Federal, para fins de apuração de tributos federais, ao argumento de que a cobrança do VRG desvirtuaria o leasing, transmudando-o em compra e venda a prestação. Abstraindo que a pretensão fiscal já foi afastada pela Corte Especial do STJ, imagine-se que tal procedimento estivesse embasado em critérios fixados em lei ordinária da União, com base no parágrafo único do artigo 116 do CTN. Nesse caso, como ficaria o ISS recolhido sobre o leasing? Seria indevido? Deveria ser pago ICMS pela compra e venda? E se os municípios não concordassem? Como resolver o conflito? O contribuinte teria de pagar duas vezes? Se não pagasse, cometeria evasão fiscal?

Como se constata, portanto, o voto proferido pela ministra relatora da ADI 2.446 não resolve as perplexidades geradas pelo parágrafo único do artigo 116 do CTN, sendo de todo conveniente que o Supremo Tribunal Federal aprofunde a análise do dispositivo para esclarecer, de uma vez por todas, qual o limite da competência por ele atribuída à autoridade administrativa e também à lei ordinária, em face dos princípios constitucionais da legalidade/tipicidade e da função uniformizadora da lei complementar tributária. As dúvidas que persistem em torno do tema justificam, inclusive, a utilização da técnica da “interpretação conforme à Constituição” [4], de sorte a prevenir qualquer nova tentativa de “regulamentar” a matéria em contrariedade aos princípios e regras nela contidos e pacificar, enfim, a controvérsia existente.

 

[1] A exposição de motivos do projeto que resultou na edição da Lei Complementar nº 104/2011, que criou o novel dispositivo, deixou explicito que “a inclusão do parágrafo único ao artigo 116 fez-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito”.

 

[2] “A insuficiência de densidade normativa da ‘norma antielisão'” (artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional)”. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 146 nov/2007, pág. 61.

 

[3] “(…) a lei complementar – ao veicular regras disciplinadoras dos conflitos de competência em matéria tributária e ao dispor sobre normas gerais de direito tributário – deve fazê-lo de modo apropriado, disciplinando, com inteira adequação, a realidade fática ou econômica sobre a qual deva incidir, sob pena de comprometer a sua própria razão de ser, frustrando, por completo, a realização das finalidades a que se refere o artigo 146 da Constituição da República” (ADI 1600, Voto ministro Celso de Mello, DJ 20/6/2003).

 

[4] A jurisprudência do STF admite a “legitimidade da utilização da técnica da interpretação conforme à Constituição nos casos em que o ato estatal tenha conteúdo polissêmico” (ADPF – 187/DF – Rel. ministro Celso de Mello – Dje 29/5/2014).

 

Hamilton Dias de Souzaé advogado, fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) e especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.

Hugo Funaro é advogado, sócio do escritório Dias de Souza Advogados (SP), especialista em Direito Tributário pelo IBDT e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

 

Foto: Divulgação

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