Opinião

A derrubada dos vetos no pacote anticrime

Incrementa-se a pena sem a comprovação empírica da sua utilidade

11 de junho de 2021

Por Claudio Bidino*

Artigo publicado originalmente no Valor

No dia 19 de abril, o Senado Federal confirmou a rejeição de dois terços dos vetos presidenciais a dispositivos do chamado “Pacote Anticrime”. Dentre as alterações legislativas revigoradas nesta oportunidade (e publicadas no Diário Oficial de 30 de abril), merecem destaque as de natureza penal e processual penal.

No âmbito penal, o Congresso Nacional promoveu a inserção do inciso VIII no artigo 121, do Código Penal, para tornar qualificado o homicídio cometido “com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido”, bem como procedeu à introdução do parágrafo 2º no artigo 141 do Código Penal, para estabelecer que, “se o crime [contra a honra] é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena”.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de duas alterações legislativas que meramente reproduzem a velha lógica repressiva estatal, arvorada em uma fé inabalável na punição enquanto instrumento de transformação social. Mais uma vez, incrementa-se a pena sem a comprovação empírica da sua utilidade e sem maiores reflexões sobre as possíveis repercussões negativas na sociedade.

Em particular, a instituição da causa de aumento que triplica a punição para os crimes contra a honra cometidos nas redes sociais promete produzir impactos profundos no funcionamento do sistema de justiça criminal.

Isto porque, justamente em um período em que a sociedade passa a interagir cada vez mais através das redes sociais, os Juizados Especiais Criminais deixam de ter competência para julgar os delitos de difamação e calúnia praticados nesses ambientes virtuais, pois as suas penas abstratas máximas passam a extrapolar o patamar máximo de dois anos estabelecido pela Lei nº 9.099/95.

O crime de calúnia praticado nas redes sociais, aliás, tal como o crime de injúria racial cometido nessas circunstâncias, passa a ser punido com uma exorbitante pena, que fatalmente não sobrevive a um teste raso de proporcionalidade – e, por conseguinte, de constitucionalidade. Enquanto o crime de calúnia praticado nas redes sociais passa a ser punido com uma pena que pode chegar a exagerados seis anos de detenção, o crime de injúria racial cometido no mesmo contexto passa a ser punido com uma descomunal pena que varia de três a nove anos de reclusão.

Já no âmbito processual penal, a primeira alteração legislativa assegurada pelo Congresso Nacional consistiu na introdução do parágrafo 1º, no artigo 3-B do Código de Processo Penal, a fim de estabelecer que a audiência de custódia deve ser realizada presencialmente, e não de maneira remota.

Busca-se, assim, impedir que a audiência de custódia se desnaturalize e deixe de cumprir com as suas principais funções, dentre as quais a de coibir a manutenção de prisões arbitrárias, desnecessárias e ilegais.

Além disso, o Congresso Nacional garantiu ainda a inserção do parágrafo 2º e do parágrafo 4º no artigo 8º-A da Lei nº 9.296/96, que regulamenta a captação ambiental, com o propósito de limitar a utilização desse método de obtenção de prova.

Basicamente, o recém introduzido § 2º vem a obstar a instalação de dispositivos de captação ambiental na casa de qualquer indivíduo, com arrimo no artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal.

Ora, seguindo-se a mesma interpretação alargada que vem sendo conferida pelos nossos tribunais superiores ao conceito de “casa”, não é desarrazoado supor que, à luz desse novo § 2º, a instalação de dispositivos de captação ambiental passará a ser vedada não apenas em domicílios residenciais, mas também em domicílios profissionais, ou mesmo temporários, o que acaba por esvaziar a utilidade desse método de obtenção de prova no cenário jurídico brasileiro.

Por sua vez, o novo § 4º do artigo 8-A vem a limitar a utilização da captação ambiental realizada por um dos interlocutores. De acordo com a redação do § 4º, essa modalidade de captação ambiental somente poderá ser utilizada (i) em matéria de defesa, (ii) quando ela tiver sido realizada sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, e apenas (iii) quando tiver sido demonstrada a integridade da gravação.

Impede-se, por um lado, que órgãos de persecução penal, ao invés de pedirem a necessária autorização judicial para a realização da captação ambiental, optem pela instrumentalização de delatores, investigados ou mesmo de vítimas e testemunhas para a obtenção de gravações ambientais de diálogos capturados por eles próprios. Mas, por outro lado, ao proibir a utilização de captações ambientais realizadas por um dos interlocutores em matéria de acusação, esse novel parágrafo § 4º acaba por extirpar do ordenamento jurídico pátrio um poderoso instrumento de obtenção de prova tradicionalmente à disposição de pessoas que se encontram em especial situação de vulnerabilidade nas suas relações íntimas, como é o caso de mulheres e crianças que sofrem sistemática violência doméstica ou sexual.

É esperar para ver como os nossos tribunais reagirão a essas significativas transformações legislativas.

*Claudio Bidino é sócio do Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford e em Direito Penal pela Universidade de Coimbra

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