Opinião

A confusão conceitual na ADI 6936: emitir ou fabricar moeda?

Ação se equivoca ao partir de premissa que não considera as reais competências dos atores públicos

16 de setembro de 2021

Raphael Ribeiro/BCB

Por Mariana Chaimovich e Theófilo Aquino

Artigo publicado originalmente no Jota

Em julho de 2021, o Partido Social Cristão (PSC) protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) a ADI nº 6936 com o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 13.416/2017, que autoriza o Banco Central do Brasil (BCB) a adquirir papel-moeda e moeda metálica fabricados fora do território nacional por fornecedor estrangeiro.

A petição inicial alega que a competência exclusiva da União para emitir moeda, prevista no artigo 21, VII, da Constituição, significa também exclusividade para impressão de papel-moeda e moeda metálica. Dessa forma, a aquisição por fornecedor estrangeiro só poderia ser autorizada em caso de mudança do texto constitucional.

Dentre os argumentos que o PSC traz, gostaríamos de focar em dois que nos parecem indicativos de inexatidão conceitual com importantes efeitos potenciais práticos sobre o funcionamento da regulação monetária no Brasil. O pedido não distingue de maneira adequada a emissão monetária, de um lado, e a fabricação de papel-moeda, de outro.

Em primeiro lugar, o Partido argumenta em torno do conceito de serviço público no histórico constitucional brasileiro. A evolução dos textos das constituições do Brasil denotaria que a impressão de papel moeda, ou seja, o ato físico em si de imprimir moeda, sempre esteve inclusa no significado da expressão “emitir moeda”. A impressão seria o primeiro processo do serviço público que é emissão monetária.

A Inicial aponta que o STF já se manifestou com base em diferentes momentos constitucionais no sentido de que a Casa da Moeda presta serviço público. A Corte teria reiterado seu entendimento de que a Casa da Moeda presta serviço público mediante outorga, em regime de monopólio, referente à competência de emissão de moeda.

Portanto, a Corte teria referendado que o serviço público prestado pela Casa da Moeda decorre da competência de emissão monetária, indicando assim a inclusão do conceito de impressão de moeda pelo conceito de emissão monetária.

Em segundo lugar, a Inicial usa de argumento gramatical para afirmar a exclusividade da competência da União para emitir e para imprimir moeda. As competências descritas pelo artigo 21 da Constituição são exclusivas da União, ao passo que as competências do artigo 22 são privativas.

Competências privativas podem ser delegadas à exploração privada. Competências exclusivas, por sua vez, só podem ser delegadas a outras pessoas de direito público e privado caso haja expressa autorização constitucional, como no caso dos serviços de telecomunicações.

Como não há na Constituição previsão expressa de delegação, a emissão de moeda deve ser executada pela União. O PSC argumenta que a impressão de papel-moeda pela Casa da Moeda representa descentralização administrativa, logo estaria autorizada pelo artigo 21.

Acompanhando esse raciocínio, o BCB não poderia ser autorizado a escolher de onde, ou seja, de qual ente/ator, adquirir papel-moeda. Dado que a decisão de emitir moeda é competência exclusiva da União, a autoridade monetária dever-se-ia vincular ao fornecimento de numerário pela União ainda que em regime descentralizado. Somente mudança no texto constitucional teria, portanto, o poder de criar a competência para o BCB de diversificar o fornecimento.

Emitir moeda é o ato de aumentar a base monetária em circulação no país. As moedas em circulação podem estar em diferentes formatos: papel-moeda, moeda metálica, moeda fiduciária, crédito bancário e, no futuro, moedas digitais de curso forçado.

O Banco Central possui diversos instrumentos de política monetária para expandir ou retrair a base monetária brasileira. O mais conhecido deles é a apuração da Taxa SELIC, por meio da qual se parametriza a remuneração dos títulos do Tesouro Federal.

Com isso, o BCB altera os incentivos para que instituições de crédito aumentem ou diminuam a oferta de empréstimos e, consequentemente, de moeda em circulação. Outro instrumento é determinar o percentual de reserva fracionária que não pode ser objeto de operações de crédito por instituições financeiras, o famoso “compulsório”: quanto maior a reserva, menor a quantidade de moeda emitida.

Imprimir mais papel-moeda e moeda metálica é apenas um dos instrumentos à disposição da União para aumentar a base monetária em circulação. O ato em si da fabricação do numerário é equivalente a qualquer atividade industrial comum que atenda determinadas particularidades para a fabricação de determinado produto.

A competência exclusiva do Banco Central recai tão somente sobre a decisão de emitir mais moeda e de escolher o instrumento adequado para fazê-lo. Cabe ao Banco Central, ademais, executar os serviços relacionados ao meio circulante, portanto, colocar o dinheiro em espécie em efetiva circulação.

O Banco Central é, inclusive, obrigado a elaborar o Programa Anual de Produção, conhecido pela sigla PAP, à Casa da Moeda até o final do mês de agosto de cada ano, e indicar, nesse documento, as projeções de demandas de numerário para o exercício financeiro seguinte (art. 2º, §2º, Lei nº 13.416/2017). Quanto à fabricação de numerário, o legislador fez a escolha pelo regime de monopólio de empresa pública, mas essa é opção infraconstitucional que em nada se refere às competências dispostas no artigo 21.

A experiência internacional, ademais, demonstra a prática de imprimir dinheiro fora do país é adotada em diversas nações. Esse é um dos motivos, inclusive, para a decisão do lançamento da cédula de R$ 200: as gráficas internacionais, sobrecarregadas em momento de pandemia, justamente pelo aumento de demanda de diversos países do mundo inteiro, não conseguiriam suprir a demanda do país por cédulas das denominações já existentes.

O lançamento da cédula de R$ 200, assim, deu-se também para suprir uma necessidade por numerário da população brasileira, em uma decisão acertada por parte do BCB. As próprias diretrizes do Conselho Monetário Nacional determinam que o BC precisa adequar o montante de valores em circulação à demanda efetiva da economia nacional, de maneira adequada temporalmente e eficiente (Resolução CMN nº 4.520/2016).

Importante ressaltar, porém, que nem a competência de emissão nem a competência de injetar numerário em circulação se confunde com a atividade de fabricar essas cédulas – atividade que, apesar de essencial para o sucesso da empreitada, pode ser realizada por terceiro, que pode ou não ser a Casa da Moeda.

Por esses motivos acreditamos que a ADI nº 6936 não deve ser conhecida pela Corte, não apenas por não se tratar de controvérsia constitucional, mas porque se equivoca ao partir de premissa que não considera as reais competências dos atores públicos atuantes nesse contexto, principalmente do Banco Central do Brasil.

Mariana Chaimovich – Advogada, legal advisor do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN), mestre e doutora pela USP.

Theófilo Aquino – Advogado, consultor de Relações Governamentais no ITCN, mestre e doutorando em Direito e Desenvolvimento pela FGV-SP.

Foto: Raphael Ribeiro/BCB

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