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Afastamento de Dilma banalizou impeachment, diz Cardozo

Para ex-ministro, processo de governador de SC não pode resultar em violência contra a democracia

2 de maio de 2021

José Cruz/Agência Brasil

Na próxima sexta-feira (7), uma corte especial formada por cinco deputados de Santa Catarina e cinco desembargadores do TJ-SC vai decidir se o governador do estado, Carlos Moisés (PSL), será ou não afastado do cargo definitivamente.  O processo de impeachment é relacionado à compra de 200 respiradores com dispensa de licitação. O julgamento ocorre mesmo após o ministro Benedito Gonçalves, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), arquivar o inquérito que investigou a aquisição dos equipamentos, concluindo não haver indícios da participação de Moisés. Procuradoria-Geral da República, Ministério Público, Polícia Federal e Tribunal de Contas concluíram o mesmo.

Em novembro do ano passado, Moisés foi absolvido do processo de impeachment que apurou se o político cometeu crime de responsabilidade em um caso envolvendo o reajuste salarial de procuradores do estado. A conclusão foi a de que não houve ilegalidades no aumento dado pela Procuradoria-Geral local.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça e ex-advogado-Geral da União na gestão de Dilma Rousseff (2011-2016), comentou os processos em Santa Catarina e disse que a Lei de Impeachment (Lei 1.079/1950) e a Constituição Federal não preveem o afastamento por ato cometido por outros servidores, ainda que estejam sob o guarda-chuva do chefe do Executivo.

“Para que tenha crime de responsabilidade é preciso ter a prova de participação dolosa do governante. O impeachment por ato culposo não existe. Não há impedimento sem que exista ato doloso. Isso é inaceitável em qualquer país presidencialista. Nessa perspectiva, não se pode tolerar, em hipótese nenhuma, situações em que o impeachment é decretado sem a comprovação clara e induvidosa do fato tipificado como crime de responsabilidade, tendo dolo inegável e gravidade evidente”, afirmou.

Cardozo diz que há um fenômeno no Brasil que foi impulsionado pela afastamento de Dilma: a banalização do impeachment. Embora o impedimento tenha caráter político e jurídico, o ex-ministro considera que o instituto está sendo usado para reverter conquistas obtidas nas urnas. Ou seja, de modo meramente político.

“Foi o impeachment da ex-presidente que abriu a porteira para o desrespeito pragmático à Constituição. Pessoas que haviam perdido nas urnas resolveram procurar meios para afastar aqueles que as derrotaram. Não discuto se o governo A, B ou C é bom ou ruim. O conjunto da obra de alguém deve ser apreciado nas urnas, no momento certo. O que não posso fazer é usar pretextos retóricos para dizer que há crime de responsabilidade quando ele não ocorre.”

Além dos casos de Santa Catarina, Cardozo  comentou o que chamou de “anacronismos” da Lei de Impeachment; o uso da teoria do domínio do fato no Brasil; e o que considera crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O que justifica a abertura de um processo de impeachment?
José Eduardo Cardozo —
 O impeachment envolve uma premissa jurídica e outra política. É preciso haver um fato ilícito grave, doloso, comprovado por meio do devido processo legal. A partir daí é que se admite um juízo político de afastamento ou não do chefe do Executivo. Ou seja, sem um pressuposto jurídico não é possível existir decisão pró-impeachment. Dizer que alguém deve perder o mandato apenas por não ter maioria parlamentar é uma heresia. O presidencialismo exige a situação ilícita. Esse é um dos pontos diferenciais entre o presidencialismo e o parlamentarismo. No último caso, o governo que não tem maioria sai de cena. No presidencialismo, não. Há o direito de quem foi eleito ficar até o final do mandato, salvo se cometer um crime grave, no Brasil chamado de “crime de responsabilidade”.

ConJur — Não deveria haver impeachment sem crime de responsabilidade…
José Eduardo Cardozo —
 Não. O processo exige uma prova clara de um ilícito grave. Faltas leves, meras irregularidades — mesmo que ocorram —, não podem justificar um processo de impeachment, segundo o que estabelece a Constituição e a matriz constitucional norte-americana, que serviu de base para a nossa Lei de Impeachment. Vejo com muita preocupação os processos que não atendem aos pressupostos jurídicos exigidos para a sua decretação. O lugar de julgar politicamente um governante que não praticou crime de responsabilidade é a urna eletrônica. Julgamentos antecipados e sem base probatória flertam com o ilícito. O impeachment está previsto na Constituição. Quando bem utilizado, ele se impõe dentro dos marcos do Estado de Direito. Quando mal utilizado, é um golpe contra a Constituição Federal.

ConJur — O senhor mencionou o duplo caráter do impeachment: é político, mas também é jurídico. Essa balança está equilibrada no Brasil?
José Eduardo Cardozo —
 Fui advogado da ex-presidente Dilma Rousseff. Eu tinha clareza de que naquele impeachment não havia crime de responsabilidade. Cheguei a dizer que temia não só uma violência contra a Constituição, mas a banalização do processo de impeachment e que situações que evidentemente não configuram aquilo que o legislador constitucional estabeleceu pudessem servir ao pragmatismo e ao oportunismo político. Agora, tenho visto muitas situações que são tentativas de banalizar o voto, de banalizar o direito do eleitor de escolher o seu governante.

ConJur — O senhor atuou no caso em que o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, foi acusado de crime de responsabilidade por causa de um reajuste a procuradores. O procedimento foi arquivado. Na próxima semana, Moisés será julgado por um processo envolvendo a compra de respiradores. Esses são exemplos da “banalização do impeachment”, conforme citado pelo senhor?
José Eduardo Cardozo —
 Não tive a chance de avaliar diretamente os autos do procedimento que será julgado na semana que vem. Atuei apenas no primeiro caso. Eu fiquei completamente estarrecido. Não havia nenhuma base para o impeachment, apenas uma situação de gratificações pagas a servidores públicos, em que a evidência de grave ilegalidade dolosa passava muito longe. Foi um grande exemplo da má utilização do impeachment. Aquele processo, se tivesse prosperado, seria uma afronta à Constituição, como várias vezes temos visto no Brasil. Já o processo dos respiradores, eu não o li, então não posso emitir um juízo. Mas as informações que chegam são as de que as autoridades não estão vendo ilícito. Se os órgãos de apuração não estão vendo nada, a Assembleia Legislativa tem que tomar muito cuidado ao apreciar essa matéria, para que não cometa não somente uma injustiça, mas uma violência contra a democracia.

ConJur — Há semelhanças entre esses casos e o processo contra a Dilma?
José Eduardo Cardozo —
 O primeiro processo era de uma banalização absurda e o governador chegou até a ficar afastado. O processo foi corretamente arquivado quanto à vice-governadora [Daniela Reinehr, atualmente sem partido], mas mantido quanto ao governador. Embora eu não seja afinado às posições políticas do governador de Santa Catarina — muito pelo contrário, pois me considero seu adversário ideológico —, fui compelido a dizer publicamente que naquele momento o processo parecia um erro democrático e constitucional lamentável. Não havia crime de responsabilidade nesse processo e no da Dilma. Então, se o impedimento do governador se consumasse, seria uma situação análoga ao caso da ex-presidente: ou seja, feito com violência à Constituição e ao Estado de Direito.

ConJur — No processo dos respiradores foi usado o chamado “domínio do fato”: o político não é imediatamente responsável pelo crime, mas haveria ilícito por “ascendência hierárquica”, já que os equipamentos foram comprados por um dos subordinados do governador. O que acha do conceito de “domínio do fato” e da sua aplicação em processos de impeachment?
José Eduardo Cardozo —
  O domínio do fato é uma teoria séria. A aplicação que se faz dela é que não é, pois a transforma naquilo que em Direito chamamos de “responsabilidade objetiva”, como se o chefe do Executivo pudesse saber tudo o que o servidor faz ou como se fosse responsável por qualquer situação indevida que um servidor pratica. Para que tenha crime de responsabilidade, é preciso ter a prova de participação dolosa do governante. Me lembro de um constitucionalista estadunidense que disse que o impeachment é o mais solene dos processos e um dos mais graves, porque ele causa um terremoto político. Ele tem razão. O impeachment por ato culposo não existe. Não há impedimento sem que exista ato doloso. Isso é inaceitável em qualquer país presidencialista. Se querem instituir o parlamentarismo, que bom. O governo perdeu a maioria? Há moção de censura, cai o governo. Mas se querem manter o presidencialismo, respeitem-no. Nessa perspectiva, não se pode tolerar, em hipótese nenhuma, situações em que o impeachment é decretado sem a comprovação clara e induvidosa do fato tipificado como crime de responsabilidade, tendo dolo inegável e gravidade evidente, na perspectiva da prestação social.

ConJur — Então as imputações por omissão imprópria e comissão por omissão não podem ser substitutos para fórmulas de criminalização por ascendência hierárquica?
José Eduardo Cardozo — Não. Eu não posso ter situações em tese culposas por omissão como caracterizadoras de impeachment. Tem que ser ação dolosa comprovada. Nos Estados Unidos não se usa a expressão “crime de responsabilidade”. São três os delitos que a Constituição norte-americana autoriza o impeachment: o suborno, a traição e aquilo que a Constituição chama de “grandes crimes e grandes contravenções”. Essa é a matriz que reproduzimos aqui. Ou seja, não é possível, no presidencialismo, que o chefe do Executivo possa ser responsabilizado por uma situação que ocorreu por causa de outra pessoa que está no interior da Administração. Isso é um pretexto político. Pretexto golpista daqueles que não querem disputar a verdade eleitoral nas urnas. Isso é inaceitável em uma democracia ditada por regras constitucionais.

ConJur — A Lei 1.079/1950 é projeto do Raul Pilla, conhecido como “doutor parlamentarismo”. Acredita que isso influenciou o fato de a norma dar tanto poder ao Congresso, no caso do impedimento de presidentes da República, e de ter tipos tão abertos? Ela foi totalmente recepcionada pela Constituição Federal?
José Eduardo Cardozo —
 Essa lei está absolutamente defasada. Ela é de 1950 e foi feita sob a égide da Constituição de 1946. Há uma tipologia bastante aberta e situações anacrônicas. Depois da lei vieram a Constituição de 1967, a Emenda Constitucional 1, de 1969, e a Constituição de 1988. Há, inclusive, uma falta de sintonia com o Decreto-Lei 201/1967, que é a norma que trata da cassação de prefeitos e faz uma diferenciação entre infrações político-administrativas e crimes de responsabilidade. Está na hora de reorganizarmos o Brasil na ótica de um estado que institucionalizou o presidencialismo. Eu sou um defensor do parlamentarismo e acho que o sistema semipresidencialista, como há na França e em Portugal, seria muito bem posto no Brasil. Mas enquanto as regras não mudarem e vivermos no presidencialismo, não devemos atingir a democracia violentando a Constituição. Eu defendo a mudança da Constituição para a implementação do parlamentarismo ou do semipresidencialismo, mas não defendo a violência constitucional.

ConJur — Há diversos pedidos impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. O que acha disso?
José Eduardo Cardozo —
 Ao longo do tempo eu tive avaliações fáticas diferentes. No primeiro período do governo Bolsonaro, até os meses finais do primeiro ano de gestão, eu cheguei a dizer que não via crimes de responsabilidade praticados por ele. Mas, a partir de um certo momento, vi crimes de responsabilidades configurados, sim. Como quando ele incitou a população contra o Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal; quando ele convocou atos contra o Congresso Nacional e os poderes constituídos; quando tentou controlar a Polícia Federal fazendo uma nomeação com claro desvio de poder, como chegou a reconhecer uma bem posta liminar dada pelo ministro Alexandre de Moraes; quando, como agora, na pandemia, o presidente se comporta de forma negacionista, conclamando a população a não seguir as próprias orientações do Ministério da Saúde; e quando ele incentiva a política de aquisição e distribuição de medicamentos que cientificamente não são comprovados para combater a Covid. Temos dezenas de atos que o presidente Jair Bolsonaro praticou no segundo ano do mandato que configuram crime de responsabilidade. São tantos pedidos de impeachment que não sei dizer quais estão alicerçados em situações fáticas configuradoras de crime de responsabilidade e quais não estão. O que posso dizer é: base jurídica para o impeachment de Bolsonaro existe, já há algum tempo. O componente político, porém, tem que ser apreciado pelo presidente da Câmara dos Deputados.

ConJur — Então como explicar que uma lei com tipos penais tão abertos não tenha sido aplicada no caso do Bolsonaro?
José Eduardo Cardozo —
 Acho isso triste. Algumas pessoas discordam de mim, mesmo as com posição política parecida com a minha. Dizem que, pragmaticamente, é melhor que o Bolsonaro permaneça como presidente, para que ele perca prestígio e a popularidade que possui. Tenho uma posição diferente: a de que a democracia que não se faz respeitar será desrespeitada. As pessoas que não sabem impor respeito sofrem desrespeito. É a mesma coisa com a democracia. Um presidente da República não pode fazer o que Bolsonaro faz. E se a democracia não reagir, prepare-se, porque ela sofrerá novas violações. Eu não penso pragmaticamente quando o assunto é o Estado de Direito; eu defendo o Estado de Direito. As posturas que temos que tomar em defesa dele e da democracia têm que ser postas não na perspectiva pragmática e casuística, mas sim em uma perspectiva principiológica, que serve a todas as correntes de pensamento. Ofender o Estado de Direito, à esquerda ou à direita, tem que gerar processo de impeachment. Mas o procedimento exige crime de responsabilidade. Se não existir esse componente, também pouco importa se o governante é de esquerda ou direita.

ConJur — O primeiro filtro para o impeachment do presidente da República é o presidente da Câmara, que não tem prazo para aceitar a abertura do procedimento. Isso precisa ser revisto?
José Eduardo Cardozo —
 Com certeza. Esse é um anacronismo autoritário inaceitável da Lei 1.079/1950. Eu não tenho razões para deixar, no presidencialismo, uma decisão como essa nas mãos do presidente da Câmara. Seja porque ele pode, em certas circunstâncias, estar vinculado ao presidente da República, seja porque, em outro momento, pode querer se vingar ou incorrer em desvio de poder, como fez o senhor Eduardo Cunha conosco. Ele, notoriamente, utilizou o processo de impeachment como represália ao fato da Dilma não ter organizado um apoio a ele na Câmara dos Deputados para evitar a cassação do seu mandato. Diante desse quadro, deixar nas mãos do presidente da Câmara a abertura do processo de impeachment é uma medida ultrapassada, inaceitável e que exige mudança da Lei 1.079.

ConJur — A banalização do impeachment começou com o processo da Dilma ou já via esse fenômeno antes?
José Eduardo Cardozo —
 Antes da Dilma o que havia era procedimentos envolvendo alguns prefeitos. Mas foi o impeachment da ex-presidente que abriu a porteira para o desrespeito pragmático à Constituição. Pessoas que haviam perdido nas urnas resolveram procurar meios para afastar aqueles que as derrotaram. Não discuto se o governo A, B ou C é bom ou ruim. O conjunto da obra de alguém deve ser apreciado nas urnas, no momento certo. O que não posso fazer é usar pretextos retóricos para dizer que há crime de responsabilidade quando ele não ocorre. Isso é inaceitável para uma democracia.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

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